Título: Uma transição difícil
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 23/08/2011, Mundo, p. 18

Especialistas, opositores e moradores de Benghazi avaliam obstáculos na construção da era pós-Kadafi. Além de redigir nova constituição e formar governo, o país poderá sofrer interferência de simpatizantes do ditador

Unir toda a Líbia, de Amsaad (leste) a Raas Ajdair (oeste), de Sirte (norte) a Gatrun (sul), sob o símbolo da paz, da justiça e da prosperidade. Com o fim de um regime que durou 42 anos e concentrou todo o poder nas mãos de Muamar Kadafi, o Conselho Nacional de Transição (CNT) terá a oportunidade de pôr em prática sua missão. Mas precisará encarar as duras tarefas de redigir uma nova Constituição, convocar eleições e formar um governo que represente os anseios e as esperanças de uma nação que empunhou armas pela liberdade. Tudo isso sob a ameaça de bolsões de resistência pró-Kadafi.

Formado em 5 de março de 2011, o organismo que governará o país interinamente se apoia em um corpo legislativo bem definido. Mustafa Mohammed Abdul Jalil ¿ um juiz e especialista em sharia (lei islâmica) de 49 anos ¿ é o mais cotado para suceder Kadafi, por quem foi nomeado ministro da Justiça em 2007. Caso a lógica hierárquica do CNT seja preservada no novo governo, o advogado Abdul Hafiz Ghoga será o vice. Na véspera de viajar à Líbia, Mourad Hemayma, embaixador do CNT no Conselho de Direitos Humanos da ONU, afirmou ao Correio que o organismo da oposição já começou a migrar de Benghazi (leste) para Trípoli. De acordo com ele, com o fim da transferência, o CNT terá representantes de todas as cidades. "Isso permitirá a adoção de uma Constituição e a formação do governo. Não será possível convocar as eleições sem uma Carta Magna, que definirá a estrutura política do país", observa.

Hemayma vê com naturalidade as disputas dentro do CNT. "Trata-se de um organismo que representa todos os espectros da sociedade líbia e é dotado de opiniões diversas." No entanto, o integrante do Conselho confia que as vitórias militares no front ocidental e em Trípoli ajudaram a superar desavenças. "Agora, vislumbramos o futuro", garante. "O regime de Kadafi está acabado, caiu muito rapidamente."

Para Diederik Vandewalle, especialista no "novo Golfo Árabe" pela Tuck School of Business at Dartmouth (em New Hampshire), o CNT está longe de ser um grupo unificado. "Ele não representa o país inteiro, além de ter sido foco de tensões", alerta. "A questão agora é: "O CNT terá poder suficiente para se firmar como um governo verdadeiramente representativo?"", opina. Diederik vê o risco de o caos se instalar após a saída de Kadafi. "A Líbia é um país sem qualquer experiência sobre o que é ser um Estado moderno", explica.

O futuro não assusta o "guerrilheiro da liberdade" Seraj Elalam, de 24 anos. Por telefone, de Benghazi, ele relatou ao Correio o clima de alegria em sua cidade. "Eu me levantei às 11h30 de hoje (ontem) com as pessoas celebrando, dando tiros para o alto. Nosso povo tem sofrido muito nos últimos cinco meses. Assim que Kadafi for pego, acho que teremos mais duas semanas de festa", brincou o líbio, que preferiu criar o site Alive in Libya (http://alive.in/libya/) a pegar em armas. Seraj prevê uma transição complicada ¿ opinião, de acordo com ele, compartilhada até mesmo pelos líbios esperançosos em devolver o progresso ao país. "Veremos bolsões de simpatizantes do ditador. Não falo de tiros ou explosões, mas da conquista de altas posições no governo. Os leais a Kadafi não se importam com a Líbia e espalharão a corrupção", aposta.

Críticas Seraj acha que, tão logo Kadafi saia de cena e a ordem seja restabelecida, as pessoas se tornarão mais críticas ao CNT. Com 35 membros, dos quais 14 são mais ativos, e regido pela transparência, o Conselho tem conquistado o respeito da população. "Mas se não atender às demandas populares, nós o derrubaremos", avisa.

Também moradora de Benghazi, Naema Abdulrazi, de 47 anos, disse que as pessoas estão muito felizes, mas reconhece os desafios. "Precisaremos fazer muitas coisas. Sem Kadafi, nosso país será diferente em tudo, e sabemos que haverá problemas", opina. De acordo com Naema, será preciso refazer a Líbia, "a partir do zero".

"Com Kadafi, nós estávamos em uma situação muito ruim. Para o futuro, eu quero que meu país tenha o apoio real do mundo. Temos cidades muito bonitas e antigas, montanhas, e podemos fazer coisas bem legais para nós e para o mundo", acrescentou.