O perdão do Papa a mulheres que fizeram aborto

 

O globo, n. 29995, 21//09/2015. Opinião, p. 14

 

É importante acolher

 

Adecisão que o Papa Francisco tomou, no início deste mês, de permitir que sacerdotes perdoem a mulheres que tenham feito aborto e que peçam remissão pelo ato, não é, por óbvio, uma manifestação do Vaticano favorável à interrupção induzida da gravidez. A iniciativa do Sumo Pontífice precisa ser analisada à luz de uma sutileza que, de qualquer forma, não esconde uma mudança importante em relação a esse tema, dos mais sensíveis sob qualquer ângulo pelo qual seja avaliado ( religioso, social, ético, médico e até econômico).

A Igreja não aceitou a contracepção em si. O perdão papal terá um período definido no tempo para ser concedido — ao longo do próximo Ano Santo Católico, de dezembro de 2015 a novembro de 2016. O que a sutileza da mensagem de Francisco aos padres não mitiga é que, sem dúvida, a licença de remissão parece ser um passo importante para o Vaticano flexibilizar sua relação com o aborto.

Sobretudo, a recomendação de Francisco chama atenção para um aspecto da questão que transcende crenças e, mesmo, a legislação: a necessidade, quando nada por demonstração de humanismo, de dar acolhimento a mulheres que tenham passado por essa experiência, traumática sob todos os ângulos. É inegável o avanço que tal iniciativa representa para uma igreja que tem procurado enfrentar, com olhar mais contemporâneo, antigos tabus — como o homossexualismo, por exemplo.

O significado dessa orientação, para o Brasil, está principalmente nesse aspecto. Ela não fere o princípio da laicidade do Estado, o que está fora de pauta. Mas, quando aponta para a necessidade de, dogmas à parte, oferecer acolhimento às mulheres, a Igreja sinaliza positivamente que esse deve ser o paradigma. O país consagra na lei três casos em que o aborto é permitido: a gravidez decorrente de estupro, risco para a vida da gestante e a gestação de feto com anencefalia. Ainda assim, não são poucos os episódios em que fica evidente o despreparo da rede pública de saúde ( SUS) para lidar com pacientes dentro desse espectro. A contracepção, por quaisquer motivos, é tema recorrentemente sujeito a debates. Na eleição presidencial de 2010, por exemplo, foi o mote de uma intensa discussão, e é compreensível que assim seja. O que não se pode deixar de lado é que, legal ou não, o aborto alimenta indicadores de uma grande tragédia no plano da saúde pública: em torno de 850 mil mulheres recorrem, por ano, a práticas clandestinas de interrupção da gravidez. Essa é a quinta maior causa de morte materna no Brasil.

O número de procedimentos relacionados à contracepção supera o de internações e atendimentos por câncer de mama ou no colo do útero, na rede do SUS. A par de seus aspectos legais, trata- se de grave problema de saúde pública. Como tal deve ser enfrentado, inclusive no Congresso, onde é preciso inibir quaisquer tentativas de contrabandear retrocessos para a questão, sempre uma perigosa atração para bancadas de pensamento mais retrógrado. A flexibilidade explícita na orientação do Papa pode ser um estímulo decisivo para o país enfrentar esse flagelo com olhos mais humanitários.

 

O respeito à vida

 

Carlos Alberto Rabaça

 

Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que, a cada ano no Brasil, são feitos de 800 mil a 1 milhão de abortos clandestinos, mais do que em outros países da América do Sul. A Pesquisa Nacional de Aborto, realizada em 2010, informava que 15% das mulheres, entre 18 e 39 anos, fizeram o procedimento. Uma em cada cinco fez pelo menos um até os 40 anos. Anualmente, cerca de 250 mil mulheres são internadas, com grande número de mortes. Tal prática é hoje a quinta causa de internações femininas no SUS.

Esta é certamente questão complexa, não somente do ponto de vista religioso, mas também filosófico e moral. Agora, o Papa Francisco permite a padres perdoar o aborto no jubileu que será celebrado pelas dioceses até 2016. Sua decisão não modifica o que a Igreja pensa sobre o assunto, condenado com a excomunhão pelas leis canônicas desde 1398. Contudo, o perdão de Deus não pode ser negado a alguém que se arrependeu e procura o sacramento da confissão com o “coração contrito para se reconciliar com o Pai”, escreveu o Papa.

Há três posições básicas sobre o tema. A Igreja Católica vê no aborto um homicídio injustificável. Por outro lado, existem aqueles que o consideram justificável em algumas circunstâncias e os que não o veem como homicídio, pois o que está no útero não seria ainda humano. Matar uma criança para salvar a vida da mãe tem sido defendido por grupos pró- aborto há anos. Mas matar uma criança por uma contingência — relutância com a gravidez, dificuldade financeira ou preocupação com o desemprego —, e querer que se aceite isso, é pedir demais ao sentido humanitário de grande parte das pessoas.

É significativo que os defensores da livre escolha da mãe nunca mencionem as crianças não nascidas, mas sim “embrião” ou “feto”, e queiram que essa vida potencial só se torne humana a partir do nascimento ou do momento em que o feto está quase totalmente formado. Porém, como defender que o recém- nascido é humano, se, até algumas horas antes, ainda no ventre da mãe, não o era?

Segundo a Declaração dos Direitos da Criança, aprovada em 1959 pela ONU, “a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e intelectual, necessita de especial proteção e cuidados, incluindo adequada proteção legal, tanto antes como depois de seu nascimento”. Verdadeiramente, a criança não nascida já é um ser humano.

O direito à vida é um valor inviolável e a base essencial dos direitos democráticos. Decidir que alguém não é digno de nascer seria um juízo totalitário, e não humanitário. Se alguém está vivendo em condições indignas, por que não fazer todos os esforços para melhorar essas condições? Se existe vida, mesmo ainda em formação, é porque existe uma fonte de infinita luz da qual aquela emana. Por isso, ela deve ser resguardada e respeitada.