Ameaça ao último refúgio

 

ADRIANA CARRANCA

O globo, n. 29994, 20//09/2015. Mundo, p. 41

 

Até recentemente o último enclave seguro na Síria, a região curda de Rojava está ameaçada pelo Estado Islâmico. Extremistas lançaram uma grande ofensiva com homens-bomba, conta a enviada especial Com um típico desmal no pescoço, a echarpe florida símbolo do espírito revolucionário para os curdos, o soldado cristão assírio explicava por que se uniu às forças das Unidades de Proteção do Povo (YPG), depois que seus pais foram sequestrados pelo Estado Islâmico (EI) com dezenas de outros no vilarejo de Tell Shamiram — o pai foi assassinado, a mãe, feita escrava. Antes que pudesse terminar a frase, sua fala foi interrompida pelo impacto de uma grande explosão. Onze de seus colegas estavam mortos, a poucos metros dele. No dia anterior, dois ataques a bomba tinham deixado cem mortos em vizinhanças árabes de Hasaka, entre eles 15 soldados e oito policiais. Dois carros-bombas foram encontrados em outros bairros, antes de serem detonados. Em Salhie, bairro curdo, três homens foram presos com coletes suicidas. Outros atentados ocorreram em diferentes áreas controladas pelos curdos e havia rumores de uma bomba em Amuda, centro de operações do YPG, além de minas terrestres deixadas na estrada entre Qamishli e Hasaka.

ALICE MARTINS/ 15-09-2015Escombros. Caminhão de um vendedor de legumes e frutas que passava pelo local onde um carro-bomba foi detonado por um militante do grupo Estado Islâmico, na Síria

— O próximo passo (do EI) será entrar na cidade — alertou uma fonte curda, entre rumores de uma grande ofensiva do EI a Hasaka e combates dentro da cidade. — A situação está mudando muito rapidamente. É a pior época que estamos vivendo em quatro anos de guerra.

A região controlada pelos curdos era o último enclave relativamente seguro na Síria, mas parece estar fugindo ao controle. A série de atentados pegou de surpresa o comando do YPG, que desde janeiro vinha obtendo conquistas importantes contra o EI no território ocupado pelos curdos, que se estende da passagem de Faysh Khabur, na fronteira com o Norte do Iraque, até o Rio Eufrates. Em outubro, EUA e Turquia concordaram em apoiar as milícias curdas, após o EI ameaçar Ancara ao invadir Kobani, cidade-chave a poucos quilômetros da fronteira turca. O apoio garantiu para os curdos vitórias em Tel Abyad e, no último mês, Hasaka.

EI TERIA DEIXADO COMBATENTES INFILTRADOS

Com 70% da população árabe, o comando do YPG acredita que o EI deixou para trás, ao recuar da província, combatentes infiltrados na cidade. Eles estariam produzindo as bombas internamente, evitando assim os postos de controle do YPG em todas as estradas sob seu comando.

O acordo entre Turquia e EUA prevê a criação de uma faixa de cem quilômetros de largura ao longo da fronteira turca. Desde o último mês, a Turquia permitiu que os EUA usassem uma base em seu território para lançar os ataques contra o EI, mas além dos terroristas, o governo turco teme que o avanço dos curdos signifique a criação de um Estado independente.

Os curdos somam 30 milhões de pessoas, a maioria na Turquia, e são tidos como o maior grupo étnico sem um Estado. Na Síria, onde vivem 1% deles, os curdos tiveram no passado direitos básicos negados e parte de suas terras confiscadas e entregues a árabes pelo governo de Bashar al-Assad. No início da revolta contra o regime sírio, eles tentaram desempenhar um papel neutro e conquistar tanto território quanto possível enquanto a guerra civil se desenrolava no resto do país. Com apoio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), o YPG conseguiu cimentar o controle sobre três enclaves curdos no Norte do país, ao longo da fronteira turca, e já controla uma área de quatro mil quilômetros quadrados.

“Bem vindos a Rojava”, repetem os policiais em cada posto de controle da parte que os curdos almejam como Estado, que inclui Turquia (Curdistão do Norte), Iraque (Curdistão do Sul) e Irã (Curdistão do Leste). Nesta região do Norte da Síria, mais de 40 mil combatentes se juntaram à milícia. Nos últimos cinco anos, os curdos ergueram uma estrutura de governo, criaram a polícia militar que controla os postos, e mantêm centros de operações em cada província sob seu controle. A área é um retrato da complexidade da guerra na Síria.

Ao mesmo tempo em que passou a colaborar com o YPG ao bombardear alvos do EI, a Turquia investiu em ofensivas aéreas contra o PKK em seu território. No vilarejo de Mahbadi, os postes do canteiro central exibem cartazes com fotos dos mártires da guerra na Síria — os que têm fundo amarelo são do YPG; os de fundo vermelho, do PKK.

A relação do YPG com o regime de Assad também é evidente. No início da guerra, Assad prometeu cidadania aos curdos que não se juntassem aos rebeldes — cerca de 60% do petróleo da Síria fica em áreas curdas, cobiçadas pelo EI. Na região de Hasakah, as áreas de petróleo são operadas pelo governo de Assad com o YPG.

Do posto de travessia de Faysh Khabur, a partir da margem síria do Tigre, para o Oeste da Síria, atravessam-se quilômetros de campos de petróleo. “Está vendo aquele lago preto ali?”, aponta o motorista. “É petróleo.”

Na cidade de Qamishli, em uma intersecção está uma estátua do pai do Assad, Hafez al-Assad, presidente da Síria de 1971 até sua morte. E a cinqüenta metros está um monumento do YPG.