Correio braziliense, n. 19085, 27/08/2015. Saúde, p. 17

Cresce a lupa sobre o retorno do câncer

Paloma Oliveto

O grande temor do paciente oncológico é ter de reiniciar a guerra contra o câncer depois de sair vencedor em uma longa e desgastante batalha. Isso acontece porque, eventualmente, algumas células malignas escapam do tumor combatido, caem na corrente sanguínea ou no sistema linfático e voltam a se manifestar. Quando há a recidiva, o tratamento pode ser mais desafiador, pois, geralmente, as características genéticas do câncer sofrem alterações.

Agora, uma equipe internacional de pesquisadores, incluindo um cientista brasileiro, descobriu uma forma de identificar a recorrência de forma bastante precoce e eficaz. Com um exame de sangue, eles foram capazes de detectar o retorno da doença oito meses antes dos métodos de diagnóstico tradicionais, com a vantagem de também obterem o perfil genético das células malignas. Isso possibilita um ajuste do tratamento, que poderá focar as características particulares do novo tumor.

O estudo, publicado na revista Science Translational Medicine, aposta no que vem sendo chamado de biópsia líquida. Trata-se de investigar, em uma amostra de sangue, a presença de pedaços de DNA do tumor circulantes no organismo. Esses fragmentos, que não seriam detectados de outra maneira, são como a impressão digital do câncer. Eles contam tudo sobre a identidade das células malignas e, portanto, indicam com precisão o tratamento mais adequado para cada paciente.

A tecnologia — mais precisa e rápida, além de menos invasiva — já é usada em alguns centros de diagnóstico, inclusive no Brasil. Contudo, para o câncer de mama em estágio inicial, o foco da pesquisa e aquele com mais chances de cura, esta é a primeira vez em que se encontra o DNA circulante no plasma após o tratamento inicial. O patologista brasileiro Jorge Reis Filho, pesquisador do Programa de Oncologia Humana do Memorial Sloan Kettering Câncer Conter, de Nova York (EUA), explica que um dos grandes destaques do trabalho é oferecer a esperança de uma terapia mais personalizada, após a caracterização genética "A possibilidade de fazer uma alteração no tratamento é fantástica. Estamos saindo da fase do tratamento empírico, igual para todos, e tornando essa terapia única e individualizada para cada paciente", avalia Reis Filho, um dos autores do artigo. No momento, esses medicamentos personalizados ainda não estão disponíveis no mercado, pois encontram-se em fase de estudo. "Mas vários grupos, incluindo o nosso, fazem pesquisas sobre eles, com resultados promissores", antecipa. O médico estima que, em três a quatro anos, alguns desses fármacos já estejam prontos.

Monitoramento

O estudo, conduzido pelo Instituto de Pesquisa de Câncer c pelo Hospital Real Marsden, ambos em Londres, foi realizado com 55 mulheres que tinham câncer de mama em estágio inicial (quando é operável, independentemente do tamanho) e não metastático. Todas haviam recebido quimioterapia seguida de cirurgia para retirada do tumor, um tratamento potencialmente curativo. Primeiro, os cientistas fizeram a caracterização genética do material extraído. Depois, passaram a monitorar as pacientes a cada seis meses, ao longo de dois anos, por meio de um exame de sangue. Eles constataram que aquelas em cujo plasma havia DNA tumoral tinham 12 vezes mais risco de relapso, comparado às demais.

No período de estudo, das 15 pacientes que acabaram sofrendo recidiva do câncer, o exame de sangue identificou com precisão o material genético circulante em 12 cerca de oito meses antes que os métodos de imagem tradicionais pudessem diagnosticar o retorno do sangue. Quando compararam o DNA das novas células malignas ao do tumor extraído logo no início, os cientistas verificaram que, de fato, elas já tinham um perfil genético diferente, evidenciando a necessidade de combatê-las com outro tipo de medicamento, mais adequado às novas características.

Jorge Filho esclarece que as participantes continuarão a ser monitoradas porque, muitas vezes, o câncer de mama retorna apenas depois de muitos anos, até uma década após o tratamento. Dessa forma, será possível verificar se a abordagem também é eficaz na detecção de recidiva tardia.

Mais perto da personalização

O presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia, Iiuffo de l-reitas )r., recebeu com entusiasmo o arligo publicado na Science Translational Medicine de hoje. "t. um trabalho fantástico, que abre uma possibilidade enorme de personalizar ainda mais o tratamento de câncer de mama inicial. Apesar de ter sido feito com um número ainda pequeno de pacientes, o considero uma minirrevolu-ção", avalia.

O especialista destaca que, no futuro, a biópsia líquida poderá ser utilizada, inclusive, para orientar os médicos a respeito da quimioterapia adjuvante. Esse tratamento consiste em administrar quimioterápicos aos pacientes de alto risco mesmo após a cirurgia para eliminar os focos residuais do câncer. Contudo, é uma terapia cara e com muitos efeitos colaterais. Segundo Freitas Jr., ao indicar quem, de fato, ainda tem DNA tumoral no organismo, o exame permitirá que apenas essas pessoas recebam a terapia adjuvante. "Para o sistema de saúde, vai reduzir custos e, para os pacientes, evitar uma quimioterapia desnecessária", comemora.

As vantagens não seriam apenas aos pacientes de câncer de mama, observa o oncologista Evanius Wiermann, presidente da Sociedade Brasileira de On-cologia Clínica (Sboc). " Teoricamente, poderia ter benefício para o tratamento de qualquer tumor, especialmente os mais freqüentes e com a tendência maior de dar melástases", diz. "Realmente, pode ser um exame revolucionário e mudar a própria maneira de acompanhar o paciente, além de personalizar mais a medicina", afirma.

O médico lembra que, hoje, como não se tem como saber exatamente em qual pessoa a doença vai voltar, o padrão é, finalizado o tratamento, pedir que o paciente volte a cada três meses, refazendo todos os exames de imagem tradicionais. A avaliação do DNA tumoral circulante permitiria um acompanhamento menos invasivo, com indicação de exames como tomografia e Pet scan apenas para aqueles com presença de material genético do câncer no plasma.

Limitações

Wiermann destaca, contudo, que o resultado, embora animador, não vai permitir que os pacientes já comecem a ser avaliados por essa ferramenta imediatamente. Além de a tecnologia ainda ser restrita — São Paulo acaba de ter o primeiro centro de diagnóstico que faz essa avaliação no Brasil —, ela é cara e, o mais importante, os médicos não teriam o que fazer com as informações fornecidas por ele. Até porque, como ressalta Sérgio Daniel Simon, diretor do Centro Paulista de Oncologia e coordenador do Grupo Brasileiro de Estudos do Câncer de Mama, ainda não existem estudos que mostrem vantagens em detectar mais cedo a recorrência do câncer de mama (o diagnóstico inicial precoce, contudo, continua essencial para o bom prognóstico).

"Hoje, não há evidências de que, se tratarmos a recidiva muito precocemente, o paciente terá mais chance de sucesso", afirma Simon. Na avaliação do médico, o ponto principal do trabalho é a identificação das mutações das células tumorais. "A habilidade de diagnosticar a recidiva já está melhorando. O que tem de melhorar é o tratamento, as novas drogas que vão ao encontro das especificidades do tumor do paciente", lembra. "O que é muito interessante no estudo é que esse exame tem potencial de mostrar as mudanças no tumor, o que poderá, no futuro, nortear o tratamento."