Correio braziliense, n. 19066, 08/08/2015. Política, p. 2

"Poderíamos ter várias Lava-Jatos"

 
 
ANA MARIA CAMPOS
LEONARDO CAVALCANTI
EDUARDO MILITÃO
 
ENTREVISTA - DELTAN DALLAGNOL 
Procurador da República defende que, com uma legislação adequada, operações semelhantes ao petrolão seriam replicadas por todo o país.


"Há diversas motivações que estão levando pessoas às ruas. Uma delas, talvez a principal, pelo menos segundo algumas pesquisas, é o fim da corrupção"
Em meio às ações da Lava-Jato que levaram empreiteiros, políticos e executivos à prisão, o Ministério Público Federal deflagrou uma campanha para endurecer a legislação penal brasileira. O objetivo é recolher 1,5 milhão de assinaturas para apresentar projeto de iniciativa popular ao Congresso, nos moldes da Lei da Ficha Limpa. Um dos líderes do movimento é o procurador Deltan Dallagnol, 35 anos, coordenador da Lava-Jato no Paraná e um dos responsáveis pelo sucesso das investigações sobre o escândalo do petrolão.

Formado em Harvard, o procurador integrou a força-tarefa do Banestado, uma escola contra crimes de lavagem de dinheiro. Essa, no entanto, não chegou a políticos, como agora. A Lava-Jato levou o poderoso José Dirceu para a prisão e investiga a participação dos presidentes da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), além de políticos experientes como o senador Fernando Collor (PTB-AL) — nesses casos, tocadas pela Procuradoria-Geral da República.

Para Dallagnol, a Lava-Jato tem semelhanças com a Operação Mãos Limpas, da Itália, e é eficiente hoje pelo resultado do julgamento do mensalão. Sem condenações tão altas naquele caso, acredita o procurador, não haveria 28 delatores no petrolão. “É o que chamamos de efeito Marcos Valério”, diz. Ele acredita que outras investigações importantes, como a Lava-Jato, poderiam ocorrer em todo o país se não houvesse impunidade no país. Por isso, a ideia de buscar ajuda na sociedade para mudar a legislação penal. “Há diversas motivações que estão levando pessoas às ruas. Uma delas, talvez a principal, pelo menos segundo algumas pesquisas, é o fim da corrupção”, aposta.



O senhor acredita que será possível recolher 1,5 milhão de assinaturas para as modificações na legislação brasileira que facilitem o combate à corrupção, como propõe o Ministério Público?
Acredito. A Lava-Jato abriu uma janela para discussão desse grave problema social, que é a corrupção, e para que medidas que podem contribuir para tornar nosso país mais justo cheguem ao Congresso com forte apoio popular, o que favorecerá sua aprovação. Pessoas estão, hoje, mobilizadas em todo o país para a coleta dessas assinaturas como jamais se viu antes. Vai acontecer. Além disso, há algumas causas pelas quais vale a pena lutar, independentemente do resultado.

O que é mais importante aprovar no primeiro momento?
Todas as medidas são igualmente importantes para aprimorar o combate à corrupção no Brasil. Elas atuam em três diferentes eixos: evitar que a corrupção aconteça; punir e recuperar valores desviados de modo adequado; e acabar com a impunidade. Não adianta, por exemplo, ter uma legislação que preveja uma punição exemplar, se ela fica só no papel. Essas propostas encontram amparo no modo como funciona a Justiça em diversos países democráticos.

O que é preciso fazer para acelerar a recuperação de recursos desviados no exterior?
Uma das medidas recomendadas internacionalmente, mas que não existe no Brasil, é o confisco alargado, que é o confisco da diferença entre o patrimônio legal de uma pessoa e tudo o que se encontrou em nome dela, quando essa pessoa é condenada por um crime altamente lesivo e que gera muito dinheiro, como corrupção ou tráfico de drogas. Não é atingido o patrimônio quando há indicações de que sua origem é legítima, mas apenas o dinheiro ilegal. Na Lava-Jato, descobrimos que um funcionário da Petrobras mantém cerca de R$ 40 milhões no exterior. Suponha que seus salários e patrimônio ao longo de toda a vida não somam R$ 10 milhões. Se só conseguirmos descobrir e comprovar corrupção no valor de R$ 1 milhão — e a corrupção é um crime muito difícil de descobrir e comprovar —, o valor que será confiscado no processo criminal será de R$ 1 milhão. O confisco alargado permitiria confiscar os R$ 30 milhões, fazendo com que o crime não compense.

Acha que o projeto de combate à corrupção pode ser comparado à Lei da Ficha Limpa?
Ambos podem ser comparados, em vários aspectos. A força popular que a Ficha Limpa ganhou e hoje impulsiona as 10 medidas contra a corrupção decorre da indignação que todos nós compartilhamos com os seguidos escândalos de corrupção nos diversos governos de diferentes partidos. A Ficha Limpa e as 10 medidas canalizam toda essa nossa indignação em ações concretas que podem contribuir com um país melhor.

Os acusados e vários advogados tentam desvalorizar as delações premiadas. O que o senhor acha dessas críticas e qual é a importância da delação premiada para as investigações?
A colaboração premiada é sempre um ponto de partida e jamais um ponto de chegada. Jamais é suficiente para, sozinha, condenar alguém. Ela permite, sim, aprofundar as investigações para alcançarmos provas materiais dos crimes, as quais, por sua vez, a depender da força, podem embasar uma condenação. Quando investigamos um crime, há diversos caminhos possíveis, como se estivéssemos em um labirinto. A colaboração lança luz sobre os melhores caminhos a seguir, isto é, aqueles que podem conduzir mais provavelmente à produção de provas. No caso da Odebrecht, por exemplo, após diversos colaboradores indicarem o envolvimento da empresa em crimes, foi possível chegar a extratos e documentos bancários que provam que ela depositou milhões de dólares no exterior em favor dos ex-funcionários da Petrobras.

O Brasil vive um momento parecido com a Operação Mãos Limpas?
Há semelhanças e diferenças, mas ela é, certamente, fonte de inspiração de onde podemos extrair lições. A Mãos Limpas representou um marco no combate à corrupção e ao crime organizado, de natureza mafiosa, na Itália. Contudo, o problema que a Mãos Limpas enfrentou continuou a existir. O sistema é cancerígeno, favorecendo o surgimento reiterado de novos tumores. A Mãos Limpas, como a Lava-Jato, atuou sobre tumores. O problema é que um sistema de Justiça penal brasileiro, inspirado no modelo italiano, não funciona bem, produzindo impunidade, que caminha de mãos dadas com a corrupção. Precisamos atuar sobre esse sistema.

O instituto da prescrição precisa ser revisto?
Com certeza. Se quiséssemos ir de São Paulo ao Rio de Janeiro, poderíamos estipular, em nosso planejamento, que a viagem deveria durar no máximo seis horas. No trajeto, contudo, podemos enfrentar um intenso tráfego de veículos e congestionamentos, chegando ao destino apenas depois de oito horas. O sistema hoje faz com que, chegando ao destino depois desse tempo, a viagem tenha que ser completamente cancelada, devolvendo-nos ao ponto de origem e impedindo que façamos o percurso novamente. Não faz qualquer sentido, mas nosso sistema é assim. Se o processo demora mais do que o previsto para chegar ao fim, ainda que isso decorra do congestionamento do Judiciário e de acidentes no percurso, os crimes são cancelados como se nunca tivessem existido. Isso estimula, inclusive, táticas protelatórias.

O senhor acredita que a experiência dos investigadores na operação Banestado fez diferença no atual trabalho, da Lava-Jato? Até que ponto? E do mensalão?
As colaborações premiadas são o impulso inicial de medidas investigativas mais profundas que colhem provas materiais dos crimes. A experiência das colaborações, essencial para que a Lava-Jato partisse da investigação de propinas de R$ 25 milhões para chegar a propinas de mais de R$ 6 bilhões, foi desenvolvida no caso Banestado, em que atuaram diversos dos procuradores da Lava-Jato. O mensalão, por sua vez, produziu o que chamamos de “efeito Marcos Valério”. A condenação de Marcos Valério a pesadas penas fez com que os réus não quisessem ser um segundo Marcos Valério e, por isso, buscassem colaborações que pudessem reduzir suas penas. Se tivéssemos um sistema operacional e saudável, que não produzisse impunidade, mas punições adequadas, poderíamos ter Lava-Jatos por todo o país. No caso Banestado aconteceu algo semelhante em relação aos doleiros, que são profissionais da lavagem de dinheiro. Nenhum operador queria ser um novo Toninho da Barcelona, doleiro que havia sido punido exemplarmente.

Por que o caso Banestado não chegou a grandes políticos e corruptores?
O Caso Banestado é um conjunto de subcasos menores, como o CC5, a Farol da Colina, o Merchants, a Hawala e outros. O subcaso Banestado foi uma pequena parte desse todo. No tocante ao subcaso Banestado, constataram-se operações fraudulentas no banco que beneficiaram seus gestores, tendo sido processados corruptores e funcionários do Banco. Contudo, passados mais de 10 anos desse caso, a impunidade e ineficiência do sistema de Justiça é tal que, segundo um jornal de grande circulação no Paraná, apenas uma das ações penais teria ensejado efetiva punição até agora. A maior parte dos casos ainda caminha nos escaninhos da Justiça, rumo à prescrição e à completa impunidade. Se a perspectiva não fosse de impunidade, em nosso sistema, poderíamos ter obtido resultados bem melhores. Talvez não possamos mais potencializar aquele caso, mas com mudanças na legislação podemos salvar inúmeros outros de grande relevância.

Manifestações populares podem catalisar o recolhimento de assinaturas do projeto de iniciativa popular de combate à corrupção?
Sim. Há diversas motivações que estão levando pessoas às ruas. Uma delas, talvez a principal, pelo menos segundo algumas pesquisas, é o fim da corrupção. É muito importante deixar claro que o Ministério Público Federal é um órgão independente dos demais poderes em sua atuação, a qual é técnica, imparcial e apartidária. Quando a corrupção é o inimigo, a solução passa por criarmos instituições e sistemas que sejam saudáveis, independentemente de quem esteja no poder.

Com a legislação em vigor, as prisões preventivas acabam sendo uma forma de punição?
A prisão preventiva, que é a prisão antes do fim do processo, é e deve ser excepcional. Uma pessoa deve cumprir pena após a existência de uma condenação proferida por um juiz ou tribunal imparcial. A prisão antes disso é feita apenas quando a liberdade da pessoa representa um risco para a sociedade, e o tempo da prisão é descontado do tempo da condenação. As prisões na Lava-Jato ocorreram quando estritamente necessárias, diante de evidências concretas, para proteger a sociedade da continuidade da prática de crimes e para assegurar que réus não atrapalhassem a instrução dos processos.