O globo, n.30.019, 15/10/2015. Opinião, p.17

Refugiados e solidarismo global

O deslocamento forçado de pessoas simboliza sempre um grave padrão de violação de direitos humanos, levando, por sua vez, a outras violações

A Organização Internacional sobre Migrações (OIM) estima que, até setembro de 2015, ao menos 473.887 homens, mulheres e crianças fizeram a travessia do Mar Mediterrâneo com destino à Europa, sendo que 2.812 delas perderam a vida nessa travessia. A maior parte dos refugiados procede da Síria — o conflito que mais gerou refugiados nas últimas duas décadas.

CAVALCANTE

De acordo com o Alto Comissariado da ONU para Refugiados ( Acnur), até 2014 mais de 59 milhões de pessoas foram forçadas a deixar o seu lugar de origem. Para o representante do Acnur, “refugiados são um termômetro da violência”.

Neste alarmante contexto, a problemática dos refugiados aponta para sete desafios centrais.

O primeiro desafio é compreender o refúgio como um fenômeno complexo e dinâmico. Cada refugiado é reflexo de um grave padrão de violação de direitos humanos. Enuncia a Declaração Universal dos Direitos Humanos que “toda pessoa vítima de perseguição tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países”. Em resposta à crise de refugiados europeus no PósGuerra, em 1951, é adotada a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, que considera refugiada toda pessoa que “devido a fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, participação em determinado grupo social ou opiniões políticas” é obrigada a abandonar o seu país de origem. Refugiada é a pessoa que não só não é respeitada pelo Estado ao qual pertence, como ainda é esse Estado que a persegue ou não pode protegê- la.

Os refugiados abandonam tudo em troca de um futuro incerto em terras desconhecidas. Na ordem contemporânea, aos refugiados políticos somamse ainda os refugiados econômicos e os ambientais. A Cruz Vermelha estima que há no mundo hoje mais pessoas deslocadas por desastres ambientais do que por guerras. Até 2010, a ONU contabilizava 50 milhões de refugiados ambientais.

Fomentar dados e estatísticas sobre a geografia do refúgio, com as suas rotas de partida e de destino, surge como um segundo desafio. Atualmente, os países em desenvolvimento acolhem 86% dos refugiados, enquanto os países desenvolvidos acolhem apenas 14%.

Um outro desafio é gerar dados e estatísticas sobre o perfil dos refugiados, com especial consideração às perspectivas de gênero e de idade.

Um quarto desafio é compreender as causas do refúgio, com a adoção de medidas preventivas eficazes. Os conflitos e as guerras, entre outros fatores, situam- se como as principais causas do fluxo de pessoas — o que remete à necessidade de reforçar o papel da comunidade internacional em prevenir a guerra e construir a paz.

Soma- se também o desafio de identificar o alcance dos direitos dos refugiados e dos deveres dos Estados, com destaque ao princípio da não devolução ( ninguém pode ser obrigado a retornar a um país em que sua vida e liberdade estejam ameaçadas) e ao direito à igualdade e não discriminação.

Um sexto desafio — sobretudo em cenários de crise econômica — é fortalecer o combate à xenofobia e a outras práticas de intolerância, radicadas na defesa e preservação da identidade nacional e na “ameaça” do multiculturalismo. Dados do Eurobarômetro de outubro de 2015 apontam para o expressivo aumento da intolerância, bem como da discriminação racial e religiosa na Europa (“Bruxelas alerta para o auge do antissemitismo e da islamofobia”. “El País”, 1/ 10/ 2015).

Por fim, há o desafio de avançar na cooperação internacional visando à proteção dos direitos dos refugiados, por meio da articulação, coordenação e harmonização de políticas estatais, a compor um quadro de responsabilidades compartilhadas. Há que se buscar soluções duradouras, preferencialmente a repatriação voluntária de refugiados ( o direito de retornar ao seu país de origem com segurança e dignidade); ou a integração local; ou, ainda, o seu reassentamento em outros países.

Quando é assegurado aos refugiados o direito de reconstruir suas vidas, eles podem enriquecer a sociedade que os acolhe, cooperando com o país e contribuindo com a diversidade cultural. Se, em 1900, a Europa correspondia a 25% da população mundial, estima- se que em 2060 corresponda apenas a 6%, sendo que cerca de um terço de sua população terá mais de 65 anos, como observa Joseph Nye (“Is the American Century Over?”, 2015).

O deslocamento forçado de pessoas simboliza sempre um grave padrão de violação de direitos humanos, levando, por sua vez, a outras violações. Neste contexto, cada Estado deve assumir a responsabilidade ética e moral de que a decisão sobre a concessão de refúgio é capaz de determinar a vida ou morte de uma pessoa.