Título: O outro mundo possível na América Latina
Autor: Sader, Emir
Fonte: Correio Braziliense, 22/09/2011, Opinião, p. 25

Sociólogo

O principal da herança maldita recebido pelo governo Lula de FHC não foi a situação econômica conjuntural ¿ profunda e prolongada recessão, inflação de novo descontrolada, etc. O pior foi tudo o que foi realizado na década anterior: desmonte do Estado brasileiro, abertura escancarada da economia, privatizações do patrimônio público a preço de banana, aumento exponencial do trabalho precário, fragmentação social, promoção dos valores de mercado, entre tantas outras "realizações" tucanas.

Foi nesse marco extremamente adverso que o governo Lula fez um esforço extraordinário para recuperar o tema do desenvolvimento econômico, reaparelhar o Estado, desenvolver políticas sociais realmente redistributivas, projetar uma política externa soberana e solidária, retomar o crescimento econômico ¿ entre tantas outras tarefas.

Praticamente todos os governos progressistas latino-americanos tiveram essa herança e os problemas decorrentes dela. Seus governos operam num marco internacional adverso ¿ política e economicamente ¿, tendo que sofrer os efeitos da desindustrialização, da internacinalização, da retração econômica, da vigência de ideologias conservadoras.

Ainda assim, a América Latina aparece hoje diante do mundo como a única região que constrói alternativas de superação do neoliberalismo ¿ como se viu, entre outros fóruns, no Fórum Social Mundial de Belém do Pará, quando todos os presidentes presentes eram latino-americanos. O que nos dá muito orgulho e, ao mesmo tempo, muita tristeza, pelo isolamento da nossa região numa empreitada que deveria reunir a grande maioria da humanidade, vítima de um modelo que trata de fazer de tudo mercadoria, às expensas dos direitos de todos.

Quando a Europa, os EUA e o Japão seguem em profunda e prolongada recessão, vítimas dos próprios venenos que nos indicavam, enquanto a América Latina se reúne na Unasul, para definir formas preventivas de defesa diante dos efeitos da crise no centro do capitalismo, para preservar e expandir as formas de crescimento econômico, fica ainda mais claro que se contrapõem dois modelos antagônicos. O centro do sistema mantém a prioridade dos critérios de ajuste fiscal aos de crescimento econômico, disparando tiros sucessivos nos pés das economias do Velho Continente.

Sofremos as consequências da recessão no centro do sistema, mas o sul do mundo, respondendo por porcentagens crescentes do PIB mundial, conseguiu enfrentá-la, intensificando o comércio entre si e aprofundando a capacidade de consumo do mercado interno de consumo popular. Esse o aspecto positivo da crise: aprofundar nova divisão internacional do trabalho e democratizar o consumo dentro de cada país.

Dessa forma, a grande maioria dos países da América do Sul intensifica o caminho de superação do neoliberalismo. Hoje, apenas o Chile mantém a ortodoxia econômica, com um governo assediado pela maior onda de manifestações populares nas duas décadas de retorno da democracia, com Pinera ostentando o pior índice de popularidade ¿ abaixo de 25% ¿ de todos os presidentes eleitos no país.

E, ao contrário do primeiro brote da crise atual, em 2008, quando cada país tratou de reagir sozinho, desta vez a Unasul articula reações coletivas, que incluem a administração coletiva das reservas, dispondo-se a socorrer países da região que possam ter problemas; o comércio regional em moedas locais e não em dólar; avançar mais rapidamente nos bancos regionais, a Corporação Andina de Fomento e o Banco do Sul. Várias reuniões importantes se desenvolveram ao longo do mês de agosto, infelizmente praticamente ignoradas pela imprensa brasileira, mas que representam passo muito importante nos processos de integração regional.

A polarização Norte-Sul não representa agora apenas a polarização entre o centro e a periferia do sistema. Ela se torna mais complexa, apontando para um mundo multipolar e para uma nova divisão do trabalho. O que precisamos agora é de um projeto integrado da região que possibilite reverter ou diminuir os efeitos da globalização neoliberal, com tendências fortes à desindustrialização, ao retorno forte do intercâmbio desigual, ao papel de exportadores de soja, de minerais e de combustíveis. Proteger o nosso mercado, desenvolver projetos comuns de infraestrutura, de construção de fábricas, de pesquisas, entre tantas outras possibilidades que temos como região em acelerado processo de desenvolvimento.