O globo, n.30.021, 17/10/2015. País, p.10

Ministra Cármen Lúcia recebe prêmio da ANJ

Para juíza, Brasil precisa de ‘imprensa liberta de qualquer teia’; estudo aponta 23 jornalistas mortos este ano

“Toda mordaça é sofrimento, e eu fui de uma geração amordaçada muitas vezes pela impossibilidade de dizer o que pensávamos, de perguntar o que queríamos” “Mesmo que ocorra por pouco tempo, a censura é danosa. Não é algo lesivo a jornalistas, ou ao jornal, mas algo que fere o direito do cidadão” Ricardo Pedreira Diretor- executivo da ANJ “Para que eu possa exercer bem minha função, preciso de uma imprensa libertada de qualquer teia, tal como posto na Constituição” Cármen Lúcia Ministra do Supremo

A ministra do STF Cármen Lúcia, relatora da ação que derrubou censura prévia a biografias, foi homenageada pela Associação Nacional de Jornais. “Toda mordaça é sofrimento”, disse ela. -SÃO PAULO- Relatora da ação que considerou inconstitucional a exigência de autorização de biografados, familiares ou representantes para publicação de biografias, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia recebeu ontem o prêmio de Liberdade de Imprensa da Associação Nacional de Jornais (ANJ). Em discurso, a ministra disse que “toda mordaça é sofrimento” e que o país precisa de uma “imprensa liberta de qualquer teia”. E dedicou o prêmio aos professores, por ensinar a todos “o gosto pela palavra e pela comunicação”.

PEDRO KIRILOSHomenagem. Carlos Fernando Lindenberg, que preside a ANJ, entrega o prêmio Liberdade de Imprensa para a ministra do Supremo Cármen Lúcia

Em referência à Constituição de 1988, disse acreditar que os brasileiros podem não ter percebido o que ela propiciou, não apenas no que diz respeito à “manutenção da liberdade”, mas a “novas formas de libertação”, por meio da busca pela informação e pelo direito ao conhecimento.

— A palavra exposta pela imprensa, ou qualquer de seus meios, são asas que nos dão para que a gente possa voar no céu dos nossos sentimentos, dos nossos ideais, de novas formas e possibilidades de ver e pensar a vida — disse a ministra, num evento em que a ANJ divulgou que 23 jornalistas foram mortos este ano. No mesmo período, 24 foram presos, 33 foram vítimas de atentado, 59 foram ameaçados e outros 255 agredidos.

77 CASOS DE CENSURA JUDICIAL De acordo com a ANJ, além da violência contra jornalistas, a censura judicial e outras decisões judiciais restritivas ao livre exercício da profissão também são prejudiciais à liberdade de expressão no país. O levantamento da entidade mostra que, desde 2008, foram registrados pelo menos 77 casos de censura judicial no Brasil.

— Geralmente, essas decisões são revistas, mas não é consolo. Mesmo que ocorra por pouco tempo, a censura é danosa. Não é algo lesivo a jornalistas, ou ao jornal, mas algo que fere o direito do cidadão — disse o diretor-executivo da ANJ, Ricardo Pedreira.

Cármen Lúcia afirmou se sentir devedora, “como juíza e cidadã”, do jornalismo. Agradeceu pelo trabalho realizado pela imprensa durante as eleições de 2012, época em que presidia o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Graças às notícias publicadas, afirma ter realizado um trabalho mais efetivo:

— O juiz estava dentro de um gabinete, tentando solucionar litígios. Mas a eleição, como se sabe, se passa nas ruas.

A juíza disse não conseguir “dar cabo, no Judiciário, a todas as demandas, muitas das quais dizem respeito ao fortalecimento das instituições democráticas”. Mas afirmou que tentará sempre melhorar seu desempenho “como servidora pública”, para “oferecer o melhor” no intuito de permitir que o jornalismo cumpra “seu papel de libertação de cada cidadão brasileiro”:

— A imprensa é a janela aberta que permite ter notícia de tudo o que se passa, às vezes na nossa própria Casa, mas que não somos capazes de ver com a celeridade que nós deveríamos ver — afirmou, lembrando que considera o trabalho da mídia de “noticiar, divulgar e denunciar” fundamental para o bom administrador.

— Não tenho a ilusão, a esta altura da minha vida, de que vou acertar o tempo todo e sei de tudo o que se passa. Não sei. Mas eu sei que haverá imprensa vigilante que me mostrará e eu corrigirei os rumos — afirmou.

Segundo Cármen Lúcia, a luta pela liberdade de expressão é permanente. Para ela, apesar das “aflições e agravos” contra o exercício pleno do jornalismo, a responsabilidade da imprensa é ainda maior em momentos como o atual, de “dificuldade e crises”.

— Para que eu possa exercer bem minha função, preciso de uma imprensa libertada de qualquer teia, tal como posto na Constituição — completou.

A ministra encerrou seu discurso lembrando fazer parte de uma geração prejudicada pela censura e, por isso mesmo, militante da defesa da liberdade de expressão. Segundo ela, “não como dever cívico, mas uma demanda da própria existência digna”.

— Toda mordaça é sofrimento e eu fui de uma geração amordaçada muitas vezes pela impossibilidade de dizer o que pensávamos, de perguntar o que queríamos, de ter notícias daquilo que precisávamos aprender — lembrou.

“CALA A BOCA JÁ MORREU”

O vice-presidente da ANJ e anfitrião da entrega do prêmio à ministra, Francisco Mesquita Neto, disse que a homenageada é "merecedora incontestável da premiação”, por “demonstrar seu repudio a qualquer tentativa de se controlar o que se publica”.

— É dever da ANJ demonstrar apoio completo a quem tem coragem de usar sua alta posição social para abrir os olhos do país à constante ameaça à liberdade de imprensa —disse.

Para Mesquita Neto, a liberdade de expressão "é suporte necessário à qualquer democracia".

Em junho, o STF decidiu por unanimidade liberar a publicação de biografias não autorizadas. O tribunal entendeu que a exigência, prevista no Código Civil, representava uma forma de censura e violação à liberdade de expressão, garantida pela Constituição.

“Censura é forma de cala boca. Pior, de calar a Constituição. O que não me parece constitucionalmente admissível é o esquartejamento da liberdade de todos em detrimento da liberdade de um. Cala a boca já morreu, é a Constituição do Brasil que garante”, disse a ministra Cármen Lúcia, na época, durante a apresentação do seu voto.

Durante o evento, o atual presidente da ANJ e representante do jornal “A Gazeta”, de Vitória, Carlos Fernando Lindenberg, que entregou o prêmio a Cármen, elogiou o discurso da ministra no STF:

— Foi exemplar a forma como agiu a ministra. ‘Cala a boca já morreu’ foi uma síntese perfeita e categórica — afirmou o dirigente.

Entre os casos de intimidação ao trabalho da imprensa estão tentativas de quebra do sigilo da fonte. No fim do ano passado, por exemplo, a Justiça Federal em São Paulo determinou a quebra de sigilo telefônico do repórter Allan de Abreu e do “Diário da Região”, de São José do Rio Preto. Este ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) reformou a decisão e negou a quebra do sigilo do repórter.

A decisão atendia a pedido da Polícia Federal, que desejava identificar a fonte do profissional em reportagens sobre a Operação Tamburutaca, deflagrada pela PF em 2011.