Como resolver a crise fiscal

 

O globo, n. 29988, 14//09/2015. Opinião, p. 14

 

Estado tutor faliu

 

A histórica crise fiscal em que o país se encontra, causa do rebaixamento da sua nota de risco, deve, merecidamente, ser creditada aos governos do PT — a partir do final do primeiro governo Lula e abarcando a gestão inicial de Dilma. Mas é preciso reconhecer o papel exercido pela Constituição de 1988 na quebra do país. Não se põe em questão a importância da Carta no restabelecimento dos direitos civis, próprios da democracia, surrupiados pela ditadura militar. O aspecto negativo da Carta deriva de uma visão ideológica de mundo por meio da qual ela foi redigida, com o Estado sendo colocado sobre a sociedade, no papel de uma espécie de tutor que concentraria o máximo das rendas da sociedade, extraídas por elevados impostos, com a finalidade de distribuílas para mitigar a pobreza. O Estado seria o agente do “bem”.

Já naquela época se tratava de uma percepção míope da realidade. A prova veio em 1989, logo no ano seguinte ao da promulgação da Carta, quando caiu o Muro de Berlim, símbolo do modelo da centralização extrema de tudo pelo Estado, sistema testado na União Soviética, e reprovado.

A Constituição seguiu essa tendência nos gastos sociais. Caberia unicamente ao Estado eliminar a pobreza. Foi assim que, em mais ou menos uma década, entre governos tucanos e petistas, a carga tributária deu um salto de dez pontos percentuais, de 25% para 35% do PIB. Estima- se que esteja hoje na faixa de 37%, uma enormidade, se comparada com outras economias emergentes. Chega mesmo a rivalizar com a soma dos tributos de sociedades desenvolvidas —, mas essas dão em troca ao contribuinte serviços básicos de boa qualidade. Não é o caso do Brasil.

A obsessão pelo Estado tutor e o pressuposto de que as fontes de financiamento público são infinitas levaram a que a vinculação do Orçamento chegasse ao paroxismo. Consolidou- se a errônea ideia de que, para se resolver uma carência pública, bastaria estabelecer que determinada parcela do Orçamento seria destinada ao setor carente. Sem qualquer outra preocupação. Chegou- se à atual situação em que cerca de 90% do Orçamento — uma conta que para o ano que vem está estimada em R$ 1,2 trilhão — são “dinheiro carimbado”. Ou seja, têm destino certo: Previdência, programas especificamente sociais, folha dos servidores.

A quebra do Estado força Dilma a mexer, afinal, nesta construção. Deve- se alterar regras para que gastos possam ser racionalizados. Não faz sentido, também, manter o salário mínimo como indexador desta enorme massa de gastos colocados sob o guarda- chuva do “social”. Pois foi a correta política de valorização do salário- base que, de forma indireta, ajudou a estrangular as finanças públicas.

Outra insensatez será insistir na velha fórmula de pressionar o já sobrecarregado contribuinte. Disso resultarão menos investimentos e menos consumo. E mais: aplicar fórmulas já abandonadas em outros países, como o gravame sobre “grandes fortunas”, apenas incentivará a migração de patrimônios. É preciso encarar a realidade do esgotamento do Estado tutor.

 

Contra a lógica

 

ENIO VERRI 

 

O país está diante de um desafio histórico. Superar a crise econômica exige união entre governo, Congresso e sociedade. É fundamental que todos tenham claro que as decisões de agora irão determinar nossa realidade nos próximos anos. O governo tem superado entraves políticos e concentrado esforços para reequilibrar as contas públicas e recolocar o país no caminho do crescimento com distribuição de renda. A busca de alternativas para a crise passa pelo ajuste fiscal e pelo inevitável debate sobre o incremento da arrecadação por meio da tributação.

Mitos precisam ser desfeitos. Entre eles o de que o dinheiro arrecado com impostos não é revertido em benefícios para a população. A Constituição de 1988 reverteu a lógica do orçamento desvinculado das receitas. Naquele ano, 55% da receita eram desvinculados — o governo tinha o poder de destinar livremente mais da metade das receitas. Em 1990, o volume orçamentário desvinculado caiu para 25%, e, a partir de 1994, para 10%, média que se mantém até hoje.

Assim, de toda a receita do atual governo, incluindo os tributos, aproximadamente 90% são vinculados e imediatamente devolvidos à sociedade por meio de custeio em Saúde, Educação, Previdência e em benefícios aos trabalhadores e incentivos a alguns setores.

Outra inverdade de grande adesão é a de que o Brasil possui uma das maiores cargas tributárias do mundo. Em 2008, nossa carga tributária bruta foi de 34,7% do PIB, inferior às de Alemanha, França, Hungria, Itália, Japão, Noruega, Portugal, Reino Unido e Suécia.

Tampouco o debate sobre tributação pode ser feito sem que seja considerado o desequilíbrio do sistema tributário, que não onera equanimemente o conjunto da população. Em 2008, os 10% da população mais pobre destinaram 32,8% da sua pouca renda para o pagamento de tributos, enquanto os 10% mais ricos destinaram 22,7% da renda.

Enquanto seguimos estagnados na discussão sobre a equidade no sistema tributário, outros países começam a debater o assunto como forma de subsidiar programas sociais. Por aqui, os super- ricos ( 0,9% da população) detêm entre 60% e 68% da riqueza, sendo que as principais fontes de acumulação de riqueza são os fluxos de renda e heranças. Ainda assim, o debate sobre o Imposto sobre Grandes Fortunas é sistematicamente sufocado quando colocado em discussão no Congresso ou na imprensa. Assim como a CPMF, que indiretamente encurta o caminho em direção à equidade. Quem gasta mais paga mais.

Governo, Parlamento e sociedade têm o dever de debater com responsabilidade, lucidez e sensibilidade a implementação de políticas que promovam avanços na justiça tributária para a manutenção de programas sociais.