GABRIELA VALENTE
O globo, n. 29984, 10//09/2015. Economia, p. 24
A crise econômica altera a rotina da maior parte das famílias no país com mais força que na crise financeira global de 2008. Mais da metade dos brasileiros, 57%, já mudou hábitos de consumo para adaptar o orçamento à perda de renda. E quase a metade, 48%, já faz “bicos” ou tem um segundo emprego para completar a renda, de acordo com levantamento feito pela Confederação Nacional da Indústria ( CNI) e pelo Ibope, divulgado ontem.
CUSTÓDIO COIMBRA/ 20- 8- 2015Fila para emprego. Trabalhadores esperam para ser atendidos na Agência Castelo do Secretaria estadual do TrabalhoA parcela de trabalhadores com mais de uma atividade praticamente dobrou de setembro de 2013 para cá. O percentual de entrevistados que procura aumentar a renda de alguma forma era bem menor: 25%. Entre os mais pobres, com renda de até um salário mínimo, um segundo trabalho é realidade para 58% dos entrevistados. Já para os que ganham mais que cinco salários, o índice é de 36%. Em 40% das casas, aqueles que não trabalhavam procuraram ocupação para ajudar a família. E 24% das pessoas voltaram a estudar para driblar o desemprego.
Para o gerente- executivo de Pesquisa e Competitividade da CNI, Renato da Fonseca, a crise de 2008/ 2009 afetou particularmente a indústria, mas o consumo ainda estava em crescimento e ajudou na recuperação.
“Já a crise atual atinge toda a economia e vem afetando o emprego e a renda da população bem mais significativamente. Tanto o investimento como o consumo das famílias estão diminuindo. Além disso, a crise política, que não existia na crise anterior, tem aumentado a incerteza com relação à recuperação”, disse o economista em comunicado divulgado pela entidade.
Vania Pereira é gerente financeira de uma empresa de comunicação digital, mas, desde maio, criou a “Bagunçando com Arte”, pela qual organiza festas do pijama infantis. Ela confecciona materiais para os eventos, como pijamas, barracas, kits com colchonete, travesseiro e edredom e pode incluir café da manhã no pacote. Vania também elabora ateliês para que as crianças personalizem camisetas, blusas e sandálias.
Ela conta que fez aulas de costura para dimensionar o tempo e o gasto para elaborar os itens de festa. Um evento para 15 crianças tem um custo médio de cerca de R$ 3.300, o que pode variar de acordo com o número de convidados e as especificações do cliente. Por festa, ela afirma que obtém, em média, 30% de lucro líquido sobre o investimento.
— Tenho uma filha de dez anos e fazia festinhas para ela e as amigas. Vi uma oportunidade aí e investi. É uma renda a mais. Dá trabalho? Dá, me consome muito no fim de semana, mas está valendo a pena — avalia. Para 86% dos mais de 2 mil entrevistados em 141 municípios, o Brasil vive uma crise econômica e 66% consideram a situação ruim ou péssima. Mais da metade das pessoas ( 59%) percebeu perda de poder de compra nos últimos 12 meses. E, para reduzir custos, os brasileiros chegaram até a mudar de residência ( 16%) e a trocar os filhos de escola privada para escola pública nos últimos 12 meses ( 13%).
O pessimismo em relação à situação econômica do país aumenta porque o desemprego atinge conhecidos e, principalmente, parentes. Dos entrevistados, 44% disseram que alguém da família foi demitido nos últimos 12 meses. E 76% estão preocupados ou muito preocupados em ficar sem emprego ou ter que fechar o negócio.
Segundo a entidade, na crise de 2008, apenas 30% das pessoas ajustaram hábitos de consumo. De acordo com a pesquisa da CNI, 90% das pessoas passaram a pesquisar mais os preços, 77% mudaram os locais de consumo, 72% trocaram produtos por similares mais baratos, 63% adiaram grandes compras e 74% reduziram as despesas da casa.
Ao todo, 37% afirmaram que se endividaram para pagar despesas pessoais e 48% consideram difícil ou muito difícil pagar seus empréstimos com sua renda atual. Mais da metade ( 53%) se endividou sem planejamento. A dificuldade para pagar aluguel ou prestação da casa própria, por exemplo, passou de 19%, em 2012, para 29%, em 2015.
GERALDA DOCA
O mercado de trabalho brasileiro gerou 623,1 mil empregos com carteira assinada em 2014, o pior resultado em 15 anos, de acordo com o Relatório Anual de Informações Sociais ( Rais), divulgado ontem pelo Ministério do Trabalho. Do total de vagas abertas no ano passado, 580,6 mil foram no setor privado e 42,5 mil, no setor público.
Até então, os dados relativos ao emprego formal em 2014 constavam do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados ( Caged), também do Ministério do Trabalho, que registrou a abertura de 396,9 mil postos com carteira assinada. O levantamento não engloba as contratações do setor público e algumas categorias de trabalhadores.
O ministro do Trabalho, Manoel Dias, adiantou que o saldo líquido de geração de empregos em agosto virá negativo novamente — pelo quinto mês consecutivo. Caso se confirme, será o pior resultado para o período desde agosto de 1996, quando foram fechadas 12.175 vagas com carteira assinada. Em agosto do ano passado, foram criados 101.425 postos:
— Acho que ainda vem negativo ( os dados do emprego em agosto). A nossa esperança que se reduza ( o número de demissões).
Em julho, foram eliminados 157.905 empregos. No acumulado do ano, o saldo negativo atingiu quase meio milhão de vagas.
De acordo com o Rais, a criação de postos de trabalho em 2014 foi puxada pelos setores de serviços e comércio, que responderam pela contratação de 587.482 e 217.013 trabalhadores, respectivamente. Já o pior resultado foi registrado na indústria de transformação, que fechou 121.717 vagas. Também ficaram com saldo negativo a construção civil, que demitiu 76.871 empregados, e o ramo de extração mineral, que perdeu outros 3.777 empregos.
Em setembro, as demissões continuam. A Ford iniciou, ontem, as dispensas em sua fábrica em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. Segundo o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ainda não foi possível saber quantos trabalhadores foram demitidos. Atualmente, a empresa tem 160 funcionários em lay- off, desde 11 de maio, e 59 afastados em banco de horas. A montadora foi procurada, mas não se manifestou.