Aliança dissolvida

 

RENATO GRANDELLE

O globo, n. 29983, 09//09/2015. Sociedade, p. 25

 

O Papa Francisco anunciou medidas para facilitar a anulação de casamento na Igreja Católica, que agora pode levar apenas 45 dias. Um mês antes de um encontro da Igreja Católica destinado a discutir polêmicas ligadas à formação da família, o Papa Francisco anunciou ontem o documento Motu Proprio ( em latim, “de sua própria iniciativa”), uma série de medidas que facilitará a anulação dos casamentos. O processo, hoje caro e dependente da análise de dois tribunais eclesiásticos, podendo se prolongar por anos, passa a ter baixo custo e, em alguns casos, será resolvido apenas em 45 dias por bispos, que ganharam autonomia para cancelar a união.

APRevolução no altar. Medidas anunciadas ontem podem recuperar fiéis pobres, além de facilitar o processo para que católicos se casem pela segunda vez na Igreja

A reforma da lei da nulidade do matrimônio entra em vigor em dezembro. O Pontífice espera que as novas medidas atraiam os pobres — que não conseguem arcar com as despesas do atual processo — e os divorciados — hoje afastados pela burocracia religiosa e pela demora da Igreja para reconhecer o fim do matrimônio e a disposição das pessoas de se casarem novamente.

O pedido de anulação não é um divórcio — a Igreja considera que o casamento é um vínculo indissolúvel. No entanto, o matrimônio pode ser anulado se for comprovado que ele nunca foi válido.

Para ser emitida a declaração de nulidade, os juízes devem considerar apenas causas anteriores ou concomitantes à celebração do matrimônio. O que acontece depois da cerimônia, portanto, não é levado em consideração pela Igreja.

— Esses casamentos são nulos desde o começo. Eles nunca existiram. O que os tribunais canônicos já fazem e, agora, os bispos também poderão fazer é emitir a declaração de nulidade que oficializa isso — explica o padre Jesus Hortal Sánchez, autor do livro “Casamentos que nunca deveriam ter existido” ( editora Loyola). — No momento da cerimônia, o casamento era válido ou nulo? É esta a pergunta que temos que fazer.

Agora, os bispos, sozinhos, podem decidir a nulidade do casamento em situações mais óbvias, como nos casos de impotência sexual, declaração de que um dos cônjuges não gostaria de ter filhos ou preferências sexuais incompatíveis.

— O Papa avalia que a Igreja deve procurar os divorciados — conta o padre Denilson Geraldo, professor da Faculdade de Teologia da PUC- SP e doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Lateranense de Roma. — Agilizar a nulidade do matrimônio é prova disso. Como o trabalho é abreviado, o processo também fica mais barato, e isso aumenta o acesso também para os pobres.

PROCESSO CARO E DEMORADO

De acordo com Geraldo, existe atualmente uma série de fatores que contribui para a lentidão do processo, como a falta de pessoas qualificadas para avaliar a nulidade do casamento em determinadas regiões. Os casos entravam em pilhas que podem demorar anos para serem esvaziadas, já que a sentença precisa passar por duas instâncias. Cada tribunal impõe um custo para levar adiante os trabalhos.

Devido a essa complexidade, os casais normalmente recorrem a especialistas para guiálos durante o procedimento de anulação, exigindo novos gastos. Para se ter uma ideia, apenas 61% dos católicos africanos que solicitaram anulações em 2012 concluíram o processo, de acordo com um estudo realizado pelo Centro da Universidade de Georgetown. No mundo ocidental, onde os fiéis costumam ter mais recursos para contratar advogados canônicos, o percentual é de 86%.

Em um encontro com o Papa em outubro do ano passado, os bispos reivindicaram mudanças no processo de nulidade dos casamentos, tornando- o mais ágil e acessível. A reforma anunciada ontem por Francisco é radical — a maior voltada ao tema nos últimos 300 anos.

Nos documentos divulgados ontem, o Papa assinala: “Não busco que se favoreça a nulidade do matrimônio, e sim a celeridade do processo”. A justificava é “aproximar os fiéis que se distanciam das estruturas jurídicas da Igreja”. Ela deve ser ágil para que os fiéis “não fiquem por muito tempo oprimidos pelas trevas da dúvida” sobre se poderiam ter seus casamentos declarados nulos e inválidos.

FILA DE POLÊMICAS

Ao declarar a mudança das normas para a nulidade de casamentos, o Pontífice antecipou uma nova rodada de discussões com os religiosos. O sínodo dos bispos em outubro discutirá questões de casamento e família, como o tratamento da Igreja a homossexuais e a ajuda a parentes separados por situações como migrações, pobreza e guerra.

Outros temas que serão postos à mesa também mereceram recentemente declarações polêmicas de Francisco. Na semana passada, por exemplo, ele autorizou sacerdotes a perdoarem mulheres que fizeram aborto. Em agosto, pediu para que os divorciados não fossem tratados como excomungados.

Para Hortal, a reforma anunciada ontem fará efeito e contribui para a imagem liberal cultivada pelo Papa:

— A nova regulamentação simplifica muito o processo para quem quer se casar de novo. Acredito que o número de pedidos de declaração de nulidade vai aumentar muito agora — comenta Hortal Sánchez. — O lema do pontificado de Francisco é a misericórdia, e essa é mais uma ação que solidifica a sua marca.

Professor de Estudos Religiosos da Universidade Virginia Commonwealth ( EUA), Andrew Chesnut acredita que, ao tratar de problemas contemporâneos delicados para a Igreja, o Papa pode conter a perda de fiéis, principalmente para as religiões neopentecostais na América Latina. Ao tocar nas interrogações do catolicismo, o Papa estaria abrindo caminho para o sínodo, ao mesmo tempo que acumula capital político.

— Esta é mais uma etapa de Francisco para construir uma Igreja mais acolhedora e aberta — avalia Chesnut. — O Papa sabe que o processo atual de nulidade de casamento tem um custo muito elevado para quem procura os tribunais eclesiásticos e, com esta dificuldade, as pessoas acabam desistindo da religião. Como ele é o primeiro Pontífice das Américas, sua tarefa urgente é reverter o grande declínio do catolicismo na América Latina. Ele acredita em medidas mais flexíveis sobre o divórcio e o perdão do aborto e possivelmente sobre a homossexualidade. Desta forma, poderá frear o êxodo dos fiéis.