Efeito cascata

 

ANA PAULA RIBEIRO, MARCELLO CORRÊA E RENNAN SETTI

O globo, n. 29975, 01//09/2015. Economia, p. 19

 

A proposta de Orçamento da União com déficit mostra o tamanho da desorganização das finanças públicas do país, afirmam economistas. O déficit fiscal tornará mais difícil a tarefa do BC de manter a inflação sob controle e deve prolongar a manutenção dos juros num patamar elevado, adiando a retomada do crescimento econômico. O país poderá ter três anos seguidos de rombo nas contas públicas, pois houve déficit em 2014 e caminha para fechar no vermelho este ano. A proposta de Orçamento foi mal recebida nos mercados financeiros, e o dólar subiu para R$ 3,629. - SÃO PAULO E RIO- A decisão do governo de assumir que fechará o ano de 2016 com um rombo de R$ 30,5 bilhões elevou o temor dos investidores de que o Brasil perca em breve o seu grau de investimento, fazendo o dólar comercial renovar sua máxima em 12 anos. A divisa avançou 1,17%, a R$ 3,629, a maior cotação desde os R$ 3,665 de 14 de fevereiro de 2003. No acumulado de agosto, o dólar acumulou valorização de 5,96%, o maior percentual para o mês desde o início do regime de câmbio flutuante, em 1999. O país registrou déficit em 2014, o que não ocorria desde 1997, quando começaram as estatísticas das contas públicas. E, como este ano as contas também devem ficar no vermelho, seriam três anos consecutivos de déficit.

31/ 8/ 2015 R$ 3,629 Anúncio de déficit primário em 2016

Com a expectativa de perda do grau de investimento, que é uma espécie de selo de bom pagador e que ajuda a reduzir o custo de captação de recursos financeiros, os investidores correram para um ativo considerado seguro, o dólar, por isso a divisa se valorizou. Durante o pregão de ontem, a moeda americana ameaçou ultrapassar a barreira dos R$ 3,70, atingindo a máxima de R$ 3,684. O Ibovespa, índice de referência da Bolsa de Valores de São Paulo ( Bovespa), recuou 1,12%, aos 46.625 pontos.

— Com déficit primário em 2016, a chance de perda do grau de investimento é maior. Isso poderia acelerar esse corte até para este ano. A alta do dólar é um movimento de aversão ao risco — diz Raphael Figueredo, analista da Clear Corretora.

O economista Raul Velloso descarta listar soluções de curto prazo para amenizar o rombo previsto na proposta orçamentária. E vê no anúncio uma desorganização do governo:

— Isso mostra que o governo não sabe o que fazer no ano que vem. A curto prazo, só se pode cortar o gasto discricionário ( despesas não obrigatórias). E isso ele ( o governo) não quis.

PERDA DO GRAU DE INVESTIMENTO MAIS PROVÁVEL

O desequilíbrio prolongado nas contas públicas deve ter repercussões para além do mercado financeiro. Para Carlos Thadeu de Freitas, economistachefe da Confederação Nacional do Comércio ( CNC) e ex- diretor do Banco Central, o impacto mais forte será sobre a atividade econômica, com a queda dos investimentos.

— O governo vai cortar onde pode, que são os investimentos. A primeira consequência disso é a atividade ainda mais fraca no ano que vem — diz Thadeu de Freitas, que também espera a perda do grau de investimento. — A decisão não vai assustar, porque hoje o país já paga prêmio de risco muito alto.

A trajetória da taxa básica de juros ( Selic), hoje em 14,25% ao ano, também será influenciada. Isso porque uma das variáveis utilizadas pelo BC para balizar a política monetária é a situação das contas públicas, ressalta André Gamerman, economista da Opus Gestão de Recursos, para quem os juros devem continuar elevados.

— À medida que a variável fiscal vai piorando, o BC pode e deve mexer em suas decisões. Quanto mais frouxo o esforço fiscal, mais duro tem de ser o aperto monetário. Cada um precisa fazer seu lado. Essa é uma regra da economia.

Mesmo com os juros em alta por mais tempo, é possível que a desaceleração da inflação, prevista para 2016, seja menos intensa do que o inicialmente estimado, diz Gamerman. Isso seria um efeito da saída dos investidores internacionais e de uma consequente alta do dólar, que pressionaria os preços de importados.

Um dos pontos mais avaliados pelas agências de classificação de risco na hora de determinar o

rating de um país é a trajetória da relação entre dívida e PIB. Quando não se economiza para pagar nem os juros ( superávit primário), a tendência é essa relação subir. Na Standard & Poor’s e na Moody’s o Brasil está uma nota só acima do nível especulativo. Já na Fitch, o espaço é de duas notas, mas espera- se um corte a curto prazo.

Para Alex Agostini, da agência de classificação de risco nacional Austin Rating, o Brasil pode perder o grau de investimento já no primeiro trimestre do ano que vem. O que impede um rebaixamento imediato, diz, é o processo das agências.

— Os fatos que justificariam um rebaixamento já estão dados. Mas a dinâmica das agências de risco é, primeiro, alterar o outlook ( perspectiva) da nota, para só depois fazer o downgrade — explica. — A situação é extremamente delicada, o governo mostra uma inabilidade enorme de resolver conflitos políticos e econômicos. Cada vez que ele tenta uma saída, como no caso da CPMF, piora a situação.

Agostini lembra que a perda do grau de investimento reduziria o fluxo de investimento para o país, pois os grandes fundos de pensão internacionais têm regras que exigem a chancela de pelo menos duas agências para fazer suas aplicações. As linhas de crédito de organismos internacionais também teriam seus juros elevados.

— A manutenção do grau de investimento vai depender de como nós nos comportaremos, tanto governo como Congresso, nos próximos meses. Temos um cenário de curto prazo muito ruim, então tudo vai depender de nossa capacidade de buscar o médio e longo prazos — afirma o economista- chefe do Safra, Carlos Kawall, que sucedeu Joaquim Levy como secretário do Tesouro Nacional em 2006.

PETROBRAS E VALE SEGURAM BOLSA

Na Bovespa, a queda só não foi maior graças à Petrobras, cujas ações foram puxadas pela alta do petróleo no mercado internacional. Os papéis preferenciais ( PN, sem direito a voto) da estatal fecharam em alta de 2,11%, cotados a R$ 9,19, e os ordinários ( ON, com voto) avançaram 3,30%, a R$ 10,62. As ações da Vale também fecharam em alta, de 3,20% ( PN) e 3,52% ( ON).

Já o dólar turismo acompanhou a alta do comercial. Nas agências de câmbio do Bradesco, a divisa encerrou a R$ 4,09 no cartão pré- pago ea R$ 3,90 em espécie. Já o euro era negociado a R$ 4,59 no pré- pago e R$ 4,38 em papel- moeda. Os valores incluem o Imposto sobre Operações Financeiras ( IOF), de 6,38% e 0,38%, respectivamente.

Na Cotação, os valores eram semelhantes: o dólar saía a R$ 4,06 e R$ 3,86 no plástico e no papel- moeda, enquanto o euro era negociado a R$ 4,56 e R$ 4,32, respectivamente. Já o Banco do Brasil vendia o dólar turismo a R$ 3,73 ( espécie) e R$ 3,92 ( cartão), e o euro, a R$ 4,18 ( cash) e R$ 4,40 ( plástico).

 

Sem estratégia para sair do vermelho

 

MARCELLO CORRÊA E RENNAN SETTI

 

Ao anunciar que vai fechar 2016 com as contas no vermelho, o governo deixa em aberto o destino das finanças do país. Especialistas avaliam que, para tentar compensar parte do déficit de R$ 30,5 bilhões projetado para o ano que vem, a equipe econômica precisará de mais impulso na arrecadação, diante da dificuldade em cortar despesas. Para isso, dependerá de medidas como reforma de impostos ou receitas extraordinárias com concessões de infraestrutura — fontes que ainda não estão garantidas. Em meio à incerteza, a perspectiva de mais um ano de déficit já tem reflexos na economia, aprofundando a desconfiança de investidores, o que alimenta a recessão.

Se o resultado negativo previsto na proposta do governo se confirmar em 2016, o Brasil pode completar sequência inédita de três anos de déficit nas contas públicas. Em 2014, o rombo foi de R$ 32,53 bilhões, ou 0,63% do Produto Interno Bruto ( PIB), o primeiro desde 1997, quando começou a série histórica do Tesouro Nacional.

NÚMERO MAIS REALISTA

Para este ano, a expectativa de economistas ouvidos pelo Banco Central vem caindo e já está em 0% do PIB, indicando que eles não esperam que o governo consiga poupar para pagar os juros da dívida pública. Com o novo anúncio, a previsão do mercado para 2016, que estava em 0,5% de superávit na semana passada, também deve passar para o terreno negativo. O governo havia se comprometido no ano passado a economizar 1,2% do PIB este ano e 2% em 2016. Em julho, a equipe econômica reduziu a meta para 0,15% em 2015 e 0,7% em 2016. Agora, espera- se déficit.

Margarida Gutierrez, economista do Coppead/ UFRJ e especialista em contas públicas, afirma que será difícil mudar esse cenário. Para ela, o ajuste fiscal proposto pela equipe econômica sofreu forte influência das disputas políticas e, agora, está nas mãos do Congresso amenizar a situação do quadro fiscal.

— Se o governo conseguir forçar o Congresso, pode propor uma reforma previdenciária. Outras possibilidades são a alteração do PIS/ Cofins e a reforma do ICMS. Há ainda a possibilidade de retomar leilões de concessões para ter receita extraordinária — enumera Margarida.

Carlos Kawall, economista- chefe do Banco Safra, lembra que a CPMF, deixada de lado no projeto apresentado ontem, pode ser uma saída, mas precisaria ser remodelada:

— Há algum prazo para se tomar algumas medidas tributárias nesse sentido. Talvez a própria CPMF, em um outro formato, com uma duração diferente, possa ser uma solução.

Em meio às críticas, o economista Felipe Salto lembra um ponto positivo do novo projeto. Para ele, assumir um déficit no ano que vem é mais “realista”.

— Não adianta só dizer que vai ter déficit atrás de déficit, porque aí a gente perde grau de investimento e o crescimento vai demorar mais para voltar. De todo modo, o número é mais realista que o anterior. Aquela meta de 0,7% não faz sentido.

O economista- chefe da Austin Rating, Alex Agostini, acredita que o déficit no Orçamento do ano que vem prova para o empresariado “que quem dá as cartas, que é o governo, não sabe o que fazer”, resultando em uma perda ainda maior da confiança.

— Isso atrasa o processo de recuperação, alimenta o cenário de perda de confiança dos consumidores, que cada vez mais convivem com preocupação com o emprego — disse Agostini. — Sem dúvida, esse déficit pegou o mercado de surpresa, até porque o governo sempre empurrou com a barriga a realidade. Mas isso deixa muito claro que o péssimo cenário não é discurso de oposição.

O Congresso tem até 31 de dezembro para aprovar o projeto enviado pelo governo. Margarida diz que o agravante de um Orçamento deficitário é que ele contraria a Lei de Responsabilidade Fiscal, o que aumenta a pressão sobre o Legislativo para ceder e tentar fechar as contas do ano que vem.

— Pode ser que, a partir daí, o Congresso acelere a votação de repatriação de capitais no exterior — exemplifica a especialista.

Agostini teme que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, tenha saído mais fragilizado desse episódio:

— Parece que o Levy perdeu força, tanto na sua imagem quanto na sua capacidade de colocar a casa em ordem.