Mudança no estatuto do desarmamento

 

O globo, n. 30023, 19//10/2015. Opinião, p. 18

 

Segurança ilusória

 

Em meio à crise política, em que se destacam uma presidente de muito baixa popularidade e uma base parlamentar instável, propostas de adulteração do Estatuto do Desarmamento tramitam pelo Congresso sem chamar maiores atenções. Trata- se de algo muito perigoso para a sociedade, pois o objetivo das alterações é enfraquecer o Estatuto, sob a falsa ideia de que a população precisa de armas para se defender. Ora, é o contrário.

Um relatório com várias mudanças deletérias poderá ser votado em comissão especial esta semana. Entre outras, a redução de 25 para 21 anos do limite mínimo de idade para a compra de armas, o aumento no número de categorias profissionais com acesso à posse e ao porte, redução de exigências para a aquisição de armamentos e até mesmo a eternização do registro concedido pela Polícia Federal.

Equivaleria a eliminar a vistoria de veículos, oportunidade que as autoridades de trânsito têm para checar o pagamento de multas, as suas condições de tráfego etc. No caso das armas, acabará qualquer monitoramento sobre elas e seus donos. Será um cheque em branco.

Caso o projeto prospere no Congresso e venha a ser sancionado no Executivo, o Brasil terá ido na contramão de um movimento contra a banalização no acesso a armas que avança no paraíso delas, os Estados Unidos, onde se multiplicam os casos de chacinas praticadas por pessoas desequilibradas, sem as mínimas condições emocionais de ter armamentos.

Cresce entre os americanos a conscientização de algo simples: quanto mais disponíveis estiveram as armas, maior o risco de tragédias. O próprio Estatuto comprovou a regra, pois o ano em que passou a vigorar, 2003, registrou, segundo o Mapa da Violência, a mais elevada relação entre mortos por armas de fogo por grupos de 100 mil habitantes: 22,2, pouco mais que o dobro do índice a partir do qual, segundo a Organização Mundial da Saúde ( OMS), a violência se torna endêmica. Com a lei, os índices caíram. As diversas campanhas feitas para o recolhimento voluntário de armas têm sido acompanhadas pela redução no número de mortos e feridos nas regiões que melhor atendem às mensagens para o desarmamento. A queda no número de vítimas não apenas evita dramas familiares de difícil reparação, como tem impacto positivo no sistema público de saúde, quase sempre pressionado por falta de recursos.

É ilusório achar que a pessoa armada está mais segura. Há pesquisas que mostram o contrário. Segundo uma delas, divulgada em recente “Profissão Repórter”, da TV Globo, feita sobre casos de roubo à mão armada, 27% evitaram o crime, 26% ficaram feridas e 46% morreram. Comprova- se que um cidadão armado tem poucas chances diante de um bandido adestrado.

O projeto de desmontagem do Estatuto surgiu da “bancada da bala”, em que militam parlamentares cuja campanha é financiada pela indústria do ramo. É tudo muito coerente.

 

Defesa do cidadão

 

Laudívio Carvalho

 

Desde a instalação da Comissão Especial do Desarmamento, o tema sobre o direito à autodefesa do cidadão de bem é um dos assuntos que permeiam a opinião pública, estudos acadêmicos e as redes sociais. De acordo com a Câmara dos Deputados, o PL 3.722/ 2012 está entre as principais enquetes abertas na página do Facebook da Casa, com mais de 47.500 interações.

Nestes mais de seis meses de relatoria, tive o cuidado de ouvir setores e entidades representativas, além da sociedade civil, que em disparado tem o maior anseio pela revogação do Estatuto em vigor desde 2003. O cidadão anseia pelo retorno do direito à defesa, já que o Estado perdeu o controle no que diz respeito ao aumento dos índices de criminalidade no Brasil.

Pela complexidade do assunto, o texto principal do relatório sofreu alterações. Como pontos principais destacam- se o retorno do porte de armas para o cidadão comum, o registro definitivo da arma, a redução da idade mínima para aquisição de armas de 25 para 21 anos, a descentralização do procedimento de concessão do porte, que passaria a ser feito pelas polícias civis estaduais, e a validade de dez anos para o porte. Hoje, o Estatuto do Desarmamento em vigor autoriza apenas policiais e outros profissionais da segurança e da Justiça a circularem armados e exige renovação do registro de três em três anos.

Um dos objetivos do projeto é desburocratizar processos e assim tirar da ilegalidade o grande número de armas disponíveis no país. A dificuldade para um morador da zona rural no Amapá se deslocar até a delegacia da Polícia Federal mais próxima é muito grande; além disso, somente a taxa de validação tem um valor médio de mil reais. Incluem- se ainda no pacote as taxas e os testes psicológico e de manuseio. Esse alto custo acaba desestimulando o cidadão, e assim ele irá permanecer de posse de uma arma ilegal.

Outra importante mudança é o fim da discricionariedade do delegado de polícia, o único com autoridade de validar o pedido de porte na lei atual. Relatos em todo o Brasil descrevem a incompreensão e a morosidade no andamento das solicitações.

Muitos setores e organizações tidas como “defensores da vida” tratam as mudanças no Estatuto como absurdas, como algo proveniente da “bancada da bala”, ou seja, como se apenas interesses pessoais dos parlamentares pudessem justificar a derrubada da lei atual.

É preciso deixar claro que nosso objetivo não é autorizar a venda de armas em cada esquina. A proposta vai ao encontro do que a sociedade quer. O cidadão está acuado e quer se defender de invasores, de agressores, de ladrões que levam, em segundos, o que foi conquistado com esforço e suor — e em muitos casos levam o bem maior: a vida. Ninguém aguenta mais tanta violência, tanta criminalidade, enquanto os marginais são tratados como “vítimas da sociedade”, que, por eles, é agredida a todo instante sem direito a defesa.