Decisões da Justiça sobre pagamento de tratamentos elevam despesas da Saúde

Juliano Basile | 

19/10/2015

As decisões judiciais obrigando União, Estados e municípios a comprar medicamentos e a realizar tratamentos de saúde ultrapassaram R$ 1 bilhão em gastos neste ano. Ao todo, há mais de 400 mil ações sobre o assunto no país e os juízes estão se tornando cada vez mais abertos aos pleitos de pacientes. Mesmo aqueles que são atendidos por convênios médicos e possuem planos privados estão conseguindo obter o direito de custeio de seus tratamentos e remédios pelo poder público.

O ministro da Saúde, Marcelo Castro, apontou que o gasto da pasta com essas decisões aumentou cem vezes nos últimos nove anos. Em 2006, foram pagos R$ 10 milhões por força de sentenças na área. Em 2010, o gasto já havia saltado para R$ 100 milhões. Em 2013, o custo dessas decisões superou R$ 400 milhões. No ano seguinte, foram despendidos mais de R$ 700 milhões. Neste ano, o valor retirado do orçamento da saúde para pagar tratamentos impostos por força de decisões judiciais já passou de R$ 1 bilhão.

"Se essa curva continuar, não sei aonde vamos parar", advertiu o ministro. Segundo ele, essa "escalada de sentenças "ameaça a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). "O que está ocorrendo no Brasil é uma judicialização inapropriada."

Algumas decisões provocaram alertas no Ministério da Saúde, pois os medicamentos não estão sequer registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e juízes ordenam que sejam adquiridos pelo Estado para o tratamento de cidadãos que entraram com ações na Justiça.

"Os medicamentos que mais gastamos hoje não estão nem registrados na Anvisa e temos que adquiri-los por força das decisões", revelou Adriano Massuda, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. Para ele, a judicialização da saúde "é uma anomalia". Ela estaria desorganizando o SUS e afetando diretamente o orçamento da área. "É um assunto complexo com interesses empresariais envolvidos", disse, referindo-se a empresas que apoiam as ações com o objetivo de vender seus produtos.

O problema também está afetando o caixa dos Estados. Alguns juízes obrigaram governos locais a atender prescrições médicas imediatamente, sob pena de prisão dos administradores locais. Num caso, um juiz determinou que 13 pacientes recebessem um atendimento que custou R$ 12 milhões por ano. As decisões têm que ser cumpridas rapidamente, pois magistrados reconhecem que há "perigo na demora" do atendimento, podendo levar à morte do paciente.

"Alguns juízes não percebem, quando dão essas liminares, que há interesses obscuros por trás da demanda por compras de medicamentos no Brasil", disse o governador do Acre, Tião Viana (PT). Segundo ele, essas decisões provocam custos de milhões e trazem sérias dificuldades no orçamento, que seria utilizado para atender a população de maneira geral, mas que acaba tendo de ser deslocado de imediato para um paciente que entrou na Justiça e conseguiu uma liminar. "O orçamento é finito e temos que ter responsabilidade nessas questões", ressaltou Viana. "Não é juiz que tem que decidir sobre a aplicação de medicamentos."

O ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), fará uma auditoria sobre a judicialização da saúde no Brasil. "Nós vamos examinar na auditoria o que é coberto pelo SUS e o que não é", explicou. Para ele, o trabalho será importante para mostrar ao juiz que a estrutura do Estado está definida para atender a determinadas causas. "Quem formula a política pública de saúde é o Estado, e não o Judiciário", disse Dantas.

Para especialista, é preciso conciliar recursos e direitos

Ligia Guimarães 

No debate sobre a judicialização, há razão nos dois lados envolvidos. Se de um lado os gestores públicos têm "cobertor curto" no orçamento, tampouco o Judiciário pode abandonar o cidadão. "A posição do juiz é muito incômoda. A pessoa chega em uma emergência, em caso de vida ou morte, ele pega a Constituição e diz: saúde é direito de todos e dever do Estado", afirma a juíza Deborah Ciocci.

Especialista no tema, Deborah integrou por dois anos, até agosto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No cargo, ajudou a estruturar as diretrizes do órgão sobre o assunto, com o objetivo de dar mais informações aos tribunais.

"O Judiciário não pode substituir o gestor e dizer onde ele vai gastar, mas também não pode abandonar o cidadão quando ele está desassistido", afirma a juíza, doutora em direito penal pela Universidade de São Paulo. Ela lembra que as demandas judiciais na saúde começaram a surgir nos anos 90, época de crescimento da Aids no país. "Os coquetéis eram muito caros e o governo não queria pagar", lembra.

Em 2009, o Supremo Tribunal de Justiça convocou audiência pública para debater as crescentes demandas judiciais relacionadas à saúde e reuniu 50 especialistas entre advogados, defensores públicos, profissionais da saúde e usuários do SUS. No ano seguinte, o CNJ criou um grupo de trabalho específico e um comitê executivo nacional para que os juízes debatessem a questão.

Hoje, cada Estado tem seu comitê para orientar os juízes. O caminho, diz Deborah, passa por soluções alinhadas com a atuação recente do dos tribunais: orientar os juízes, criar núcleos de apoio técnico, pareceres de universidades sobre medicamentos que funcionam ou não; tratar o remédio pelo princípio ativo e não pela marca; fazer acordos e incluir o paciente no SUS, para que a gestão pública acompanhe a evolução daquele caso e suspenda o fornecimento em caso de morte. "Quando a pessoa recebe o medicamento por via judicial e não via SUS, é uma situação de desperdício por uma falta de controle."

As demandas de solução mais difícil, diz Deborah, são as que envolvem portadores de doenças raras, para as quais os medicamentos são muito caros. "O gestor, claro, pensa: vou pagar esse remédio que custa R$ 7 milhões para um indivíduo? Quantas pessoas eu poderia atender com esse dinheiro no SUS! Mas do ponto de vista do Judiciário, essa pessoa da doença rara é igual a qualquer outra. Quem vai definir: você não tem direito, pode morrer?", questiona a juíza.

Mesmo nestes casos, a juíza vê espaço para reduzir distorções na argumentação dos gestores públicos municipais, estaduais e da União. Nos tratamentos experimentais, há dois tipos distintos; aqueles de eficácia reconhecida internacionalmente, mas que ainda não foram aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ou pelo Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, e poderiam, portanto, ser concedidos pela Justiça.

E existem outros, em fase 2 de avaliação de eficácia, em que ainda não é possível medir os efeitos do remédio. "Você gastar dinheiro público com uma pessoa, para experimentar se o negócio vai dar certo? É preciso ter consciência global", diz.

A defensora pública do Estado de São Paulo Priscila Morgado Cury, coordenadora da área de Fazenda Pública na capital paulista, é responsável pela elaboração pedidos judiciais contra o poder público. Segundo Priscila, a defensoria do Estado registrou 243 ações por medicamentos em 2014; até agosto deste ano, foram 164. A função da defensoria, destaca, é oferecer defesa integral e gratuita para famílias necessitadas que ganham até três salários mínimos.

A maioria absoluta das demandas é de medicamentos. O valor das ações, diz Patrícia, varia muito. Se é um medicamento de uso contínuo, por exemplo, é 12 vezes o valor do medicamento. "Mas com exceção dos remédios de alto custo, não são ações de valor muito alto."

Valor econômico, v. 16 , n. 3864, 16/10/2015. Brasil, p. A2