Título: Política externa em agosto
Autor: Saraiva, José Flávio Sombra
Fonte: Correio Braziliense, 28/08/2011, Opinião, p. 21

Ph.D. pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, é professor titular de relações internacionais da UnB

A política externa ganhou força nos debates acadêmicos da penúltima semana de agosto. Duas interpretações, díspares, propiciaram intenso contraditório científico, daqueles que fazem bem a alma, ao espírito do pesquisador e à universidade que ansiamos.

A coincidência do lançamento de um artigo em um livro animou o debate em torno das políticas exteriores dos Estados contemporâneos. Permitiu, tanto nas redes sociais quanto na noite de bate-papo no auditório da Livraria Cultura, o mover a comunidade acadêmica dedicada ao estudo das relações internacionais na capital da República.

O debate começa com o artigo publicado no Financial Times, de 16 de agosto, escrito por Philip Zelikow, professor da Universidade de Virginia, nos Estados Unidos. Intitulado The Global Era and the End of Foreign Policy, sugere argumento simples: a política externa dos Estados morreu. Se, no passado, ela servia aos ajustes das relações interestatais, a política externa, nos tempos da globalização, tornou-se ajuste doméstico às adaptações internacionais.

Para Zelikow, a política externa cedeu aos que de fato têm poder, não mais diplomatas, nem os negociadores internacionais. O mesmo se diria dos orçamentos nacionais que são agora repartidos entre várias agências de formulação da ação externa que dificultam uma política externa clássica, agora dividi por múltiplos agentes e agendas concomitantes que veem de fora da nação, gerados pela era global.

O segundo fato acadêmico foi o lançamento da quarta edição do livro escrito pelos professores Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, da UnB e Unesp. Por iniciativa do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, a noite de quinta-feira, dia 25, foi marcada pela boa contenda acadêmica na Livraria Cultura. A iniciativa fez parte do programa de ampliação de visibilidade social do grupo mais produtivo da área de relações internacionais do país, conforme relatório da Capes. E a noite de debates não teve fim.

Lançado originalmente há 20 anos, intitulado História da política exterior do Brasil, o livro agrega, na nova edição, um capítulo a defender a força da política externa de Estados como o Brasil nos dias de hoje. Para os autores, a política externa é campo vivo, atual, contemporâneo, positivo, no conjunto da inserção internacional do Brasil do início do século 21. Cervo especialmente critica o artigo do professor da Universidade de Virginia, uma vez que esse reflete o momento da política externa norte-americana, não o das várias políticas exteriores com peso novo na onda globalizante das relações internacionais do início do novo século.

Desbastemos o caminho. A introspecção da política externa pode ser fenômeno observado em Estados menores, sem massa crítica, território, adensamento de poder de dissuasão e escala econômica global. A diminuição do peso da política externa norte-americana e europeia na política internacional são fenômenos conhecidos pela literatura de relações internacionais nestes dias. A dificuldade de manter as linhas do G7 nas negociações internacionais diante da atual governança sincrética (conceito que já discuti em artigo anterior) é também nova conjuntura das relações internacionais do mundo que vivemos.

Mas daí a concluir que há fim da política externa é outra coisa. Faz lembrar a leviandade intelectual daqueles que falaram do "fim da história". Na prática, não se nota tal fenômeno em países como o Brasil, a Índia, a China e mesmo países emergentes que garantem, nos dias de hoje: o crescimento da economia global, o traço de racionalidade nos temas de segurança internacional, o G-20, o Brics, o Ibas, o diálogo no Conselho de Segurança da ONU em torno dos meios pacíficos para solução de controvérsias e a crítica à ideologia do terrorismo contra o terrorismo ou a obstrução à lógica das guerras preventivas.

O que importa é que o debate prossegue em alto nível. Nova coleção, voltada ao estudo da política externa do Brasil, em sua dimensão bilateral, com parceiros históricos e atuais, está quase pronta, na forja desse mesmo grupo de produtivos acadêmicos.