FH cita pressão para nomear ‘ladrões’ em seu início de governo

 

RENATO ONOFRE, SILVIA AMORIM E TIAGO DANTAS

O globo, n. 30025, 21//10/2015. País, p. 8

 

Em “Diários da Presidência”, sobre seus primeiros anos no poder, FH diz que foi pressionado para nomear “ladrões” e se queixa do toma lá da cá e da mídia. - SÃO PAULO- Problemas na Petrobras e a dificuldade de montar seu Ministério, em meio à pressão dos partidos aliados por nomeações, foram questões que preocuparam o ex- presidente Fernando Henrique Cardoso nos dois primeiros anos de seu governo, segundo o livro “Diários da Presidência”, com a compilação de gravações feitas pelo próprio FH de 1995 a 1996. Ele revela que foi alertado sobre o “escândalo” que era a maior estatal brasileira, que o debate sobre a reeleição começou quase simultaneamente com seu mandato e que a relação com o PMDB sempre foi instável. O livro, que será lançado dia 29 pela editora Companhia das Letras, mostra ainda o “toma lá dá cá” com os partidos da base e nomeações de afilhados políticos. Esse primeiro volume do diário conta também detalhes de sua vida pessoal, como as aulas de natação e as visitas ao cabeleireiro e ao dentista.

PETROBRAS

Em 16 de outubro de 1996, FH é avisado que a Petrobras era um “escândalo”. O tucano constata ser caso para intervenção na estatal, mas confidencia que não a faria. O alerta foi feito num almoço pelo dono da Companhia Siderúrgica Nacional ( CSN), Benjamim Steinbruch, que havia sido nomeado para o Conselho de Administração da estatal. “Eu queria ouvi- lo sobre a Petrobras. Ele me disse que a Petrobras é um escândalo. Quem manobra tudo e manda mesmo é o Orlando Galvão Filho, embora Joel Rennó tenha autoridade sobre Orlando”, relata FH. Galvão Filho era presidente da BR Distribuidora e foi diretor financeiro da Petrobras. — Eu não tinha esse poder. A Petrobras tinha sete diretores. Não sei o que levou o Benjamim a falar isso. Talvez eu conflitasse com ele em alguns assuntos — disse Galvão ao GLOBO. O mais grave, segundo FH, era que todos os diretores da Petrobras eram os mesmos do Conselho de Administração. “Uma coisa completamente descabida. (...) Acho que é preciso intervir na Petrobras. O problema é que não quero mexer antes da aprovação da lei de regulamentação do petróleo pelo Congresso, e também tenho que ter pessoas competentes para botar lá”.

EMENDA DA REELEIÇÃO

Relatos de FH indicam que a discussão sobre a emenda da reeleição começou seis meses após o início do seu governo. A primeira referência que ele faz ao tema em seu diário foi em 11 de julho de 1995, durante conversa com um deputado do PSDB na qual FH se disse favorável à reeleição. Em 1996, as negociações tomaram corpo, e FH conta encontros que teve com políticos sobre o assunto. Ele fala em “chantagem”, sem detalhar. Até 1996, FH não se posiciona se seria candidato a um novo mandato. Pelo contrário, às vezes, demonstra irritação e cansaço com as negociações. “A luta está ficando cada vez mais surda e também suja. (...) Não estou morrendo de amores por ficar aqui, não, começa a ser tedioso estar na Presidência”. A emenda da reeleição foi aprovada em 1997 sob suspeita de compra de votos.

TOMA LÁ DÁ CÁ

No primeiro ano de governo, o presidente reclama da frequência com que parlamentares pedem nomeações de seus afilhados para cargos de segundo e terceiro escalões, em troca de apoio em votações no Congresso. Em 31 de maio de 1995, ele relata uma das reuniões com ministros para discutir as nomeações: “No fim da tarde estive (...) naquelas infindáveis discussões sobre nomeações, alguns são ladrões e nós temos algumas provas. (...) É vergonhoso, mas é assim”. Entre os políticos que pediram nomeações, ele cita José Sarney, Valdemar Costa Neto, Jader Barbalho, Wellington Moreira Franco e Michel Temer. O pedido do atual vice- presidente é revelado em gravação de 3 de outubro de 1995. Temer teria pedido a indicação de um protegido seu para o fundo de pensão dos portuários. “É para ser mais solidário com o governo, ele quer também alguma achega pessoal nessa questão de nomeações. É sempre assim. Temer é dos mais discretos, mas eles não escapam. Todos têm, naturalmente, os seus interesses.” Temer não quis comentar essa citação. FH não trata no diário do resultado desses pedidos. Na formação do governo, ele negociou com PFL, PMDB e PTB uma divisão de ministérios.

DIFICULDADES COM PMDB

A relação com o PMDB não foi fácil para FH. Ele se mostra incomodado e, às vezes, profundamente irritado como o comportamento do partido em votações no Congresso. Faz crítica a caciques do partido, como o ex- senador José Sarney, que presidia o Senado: “No Senado temos cinquenta votos seguros, o que dá dois terços. Tenho medo da Câmara e do PMDB, porque aí tem manobra. Tem manobra do Sarney, do Paes de Andrade”. E reclama: “Estou perdendo muito tempo com o Congresso, com nhem- nhemnhem, como eu digo. Pois bem, precisamos passar logo essa fase de reformas e refazer nossa base política. Todos sentem isso. Do PMDB, que hoje tem, sei lá, cem, 150... vão ser 40 conosco, e assim vai. O resto vai fazer o que quiser”. FH diz que Sarney o quer atacá- lo porque seria candidato à Presidência em 1998: “Essa CPI ( dos bancos) é realmente uma falta de juízo absoluto, e o presidente Sarney atuou de maneira inconsequente”. Sarney disse que não se lembra de alguma ação para enfraquecer FH.

PT E LULA

Há poucas referências a Lula neste primeiro volume do diário. Uma delas é quando faz avaliação sobre o PT na oposição. FH diz em 25 de julho de 1996: “A razão pela qual o Lula não constituiu um polo de oposição viável é a falta de um projeto, mas também porque o PT é um partido excludente. Ele não faz alianças. O Maluf é mais perigoso”. Mais adiante, ele é irônico ao comentar o desempenho dos petistas nas eleições municipais daquele ano. “( O PT é) Muito bom para governar município, muito bom para governar comuna, e deixe que governem, que aprendam, mas não vai haver crescimento do PT”.

BARBEIRO, DENTISTA E NATAÇÃO

O diário revela, também, passagens da vida cotidiana no exercício da Presidência da República. São constantes os relatos das aulas de natação e das visitas ao cabeleireiro. Em 1 º de setembro de 1996, o ex- presidente aproveita o dia para cortar o cabelo e fazer a unha do pé. Há registros também de sua preocupação com a saúde. Em 29 de junho de 1995, ele afirma que estava “com gripe, (...) com um terçol, pressão alta, sinais de estresse”. Uma visita ao dentista também consta nas anotações: “De lá fui ao dentista, eu há muitos anos não tenho cárie e continuo sem tê- las, mas tem que fazer sempre esse tratamento de gengiva para evitar qualquer problema”, conta ele.

OS PRIMEIROS ESCÂNDALOS

Os dois primeiros escândalos do governo FH ( o Caso Sivam, que envolvia contratos do sistema de monitoramento da Amazônia, e a “Pasta Rosa”, lista de políticos financiados pelo Banco Econômico) estão registrados nas gravações. O grampo feito contra o ex- chefe de cerimonial do Palácio do Planalto, com a anuência de um aliado próximo, e que revelou uma tentativa de tráfico de influência para escolha de empresas interessadas no projeto Sivam, é para ele a “primeira lama”. Diz que os “amigos” é quem podem desestabilizar o governo: “Os governos arrebentam pela fragilidade dos amigos próximos. Os inimigos dão menos trabalho do que os amigos próximos. Todo mundo sabe disso, mas é duro sentir na pele”. A atuação da Polícia Federal no caso é criticada e FH cobra ação firme do então ministro da Justiça, Nelson Jobim. Em dezembro de 1995, FH cita pela primeira vez o caso da “Pasta Rosa”. Diz que o caso é grave e se sente aliviado por ter sido candidato quatro anos após o escândalo: “Todo mundo sabe que todo mundo recebeu. Tenho a sorte de só ter sido candidato em 94, quando isso tudo já era legal. Na verdade, tudo isso é uma farsa, mas aparece como se fosse um grande escândalo. Mais um. E, de fato, houve esse vazamento”. 

 

O ex-presidente e a mídia

 

O primeiro volume de “Diários da Presidência” mostra como foi a relação do ex- presidente Fernando Henrique Cardoso com a imprensa nos dois anos iniciais de seu governo ( 1995 e 1996). Ele relata a relação com jornalistas, além de casos envolvendo os principais veículos de comunicação do país, criticas à forma como medidas do governo foram retratadas no noticiário e reclamações sobre vazamento de informações.

Em 20 de março de 1995, ele diz que a imprensa faz mais oposição que os adversários: “Curiosamente, até esse momento não tenho oposição política. Tenho oposição difusa, e a imprensa, que é uma espécie de Promotoria Geral, quer acusar em nome da sociedade, sem objetivo propriamente político definido”.

As reclamações são constantes. Em dois episódios, em março de 1996, ele reclama com o ex- senador baiano Antônio Calos Magalhães, morto em 2007, do que chama de “postura de independência”: “O sistema Globo está muito difícil, porque tanto o Roberto Irineu quanto o João Roberto ( filhos de Roberto Marinho) estão hoje mais voltados para o conjunto do grupo, estão fazendo os negócios necessários ao sistema, sem estarem à frente nem da televisão nem do jornal”. “E por mais que sejam nossos amigos os que estão lá hoje, e são até bastante amigos meus, Merval ( Pereira), Ali Kamel, não há quem controle as coisas, porque estão naquela linha ( de independência)”.

FH classifica o posicionamento de alguns colunistas e articulistas da “Folha de S. Paulo” como “nostalgia de impeachment”. São constantes as suas reclamações sobre a forma como suas declarações são retratadas na imprensa, como em 26 de julho: “Fiz declarações que ontem os jornais pioraram, equivocadamente, de maldade.”

Vazamentos de conversas também o irritaram. Em junho de 1995, em meio à discussão sobre impostos para importação de carros da Argentina, ele relata como reportagens podem prejudicar a relação entre o então ministro do Planejamento, José Serra, e o da Fazenda, Pedro Malan: “Serra diz que foi a Fazenda que vazou, Malan diz que foi o Serra que soltou para dar aos parlamentares. Os dois devem ter vazado”.

O diário cita encontros com donos dos maiores jornais de São Paulo. Em 10 de maio, almoçou com Fernão Mesquita e Rodrigo Mesquita, do “O Estado de S. Paulo”: “Conversa muito tranquila, amena”. Dois dias depois, relata encontro com a família que controla a “Folha de S. Paulo”: “O curioso é que ontem o Frias pai ( Octavio Frias de Oliveira) e os dois filhos vieram jantar aqui em casa. Conversa difícil”.

A escolha do Ministro de Comunicações foi tema de conversas entre FH e representantes dos principais grupos midiáticos, antes da assumir a Presidência. Em relato no dia 25 de dezembro de 1994, ele diz que encontrou “os principais chefes de comunicação do Brasil” e eles nada pediram: “O Roberto Civita veio aqui, o Roberto Irineu, mais o João Roberto, o Zé Roberto, todos falaram comigo esse tempo todo, falei com o pessoal da Bandeirantes, ou seja, nunca houve, nem de longe, nenhuma insinuação de designação de A, B ou C. Mais, o pessoal da Globo especificamente disse o seguinte: ‘ Olha, o ministro é seu, quem disser que fala por nós está mentindo, nós não temos nenhuma reivindicação.’”