Crime sem castigo

 

MARTHA BECK E SIMONE IGLESIAS 

O globo, n. 30032, 28//10/2015. País, p. 3

 

O projeto que permite a repatriação de dinheiro não declarado de brasileiros no exterior foi alterado para permitir a anistia de quem fizer caixa dois ou cometer os crimes de descaminho e associação criminosa, entre outros. A polêmica proposta pode ser votada hoje no plenário da Câmara. -BRASÍLIA- No momento em que a Operação Lava-Jato revela a existência de dezenas de contas de políticos e dirigentes da Petrobras no exterior, pode ser votado hoje no plenário da Câmara dos Deputados o projeto de lei que permite a repatriação de ativos enviados para fora do país sem aviso à Receita Federal. A proposta vem cercada de polêmica. Seu relator, o deputado Manoel Júnior (PMDB-PB), fez uma série de alterações que podem abrir as portas para a legalização de dinheiro decorrente de crimes como descaminho, caixa dois e formação de quadrilha.

O parlamentar também ampliou prazos de adesão, reduziu o Imposto de Renda (IR) e a multa que serão cobrados. E ainda desvirtuou o principal objetivo da medida, que era ajudar a destravar a reforma do ICMS.

O projeto da repatriação que foi encaminhado pelo governo ao Legislativo permitia a legalização de dinheiro remetido para o exterior, desde que ele fosse decorrente de sonegação fiscal, evasão de divisas ou lavagem de dinheiro relacionado ao envio desses valores. O objetivo era arrecadar cerca de R$ 11 bilhões com o pagamento de Imposto de Renda e multar quem obteve o dinheiro legalmente no Brasil, mas tentou escondê-lo do Leão.

PROPOSTA REDUZ MULTA PARA SONEGADORES

Manoel Júnior, no entanto, incluiu na proposta recursos decorrentes de qualquer lavagem de dinheiro, caixa dois, descaminho, falsidade ideológica e até formação de quadrilha relacionada diretamente a esses crimes. Acrescentou ainda a anistia aos envolvidos. Esse benefício só não valerá para pessoas que tenham uma condenação transitada em julgado (sem a possibilidade de recursos).

— Fizemos as alterações no limite do que é seguro juridicamente e tornando as alíquotas mais convidativas — afirmou o relator.

A proposta do Executivo fixava o valor do Imposto de Renda a ser pago pelos recursos repatriados em 17,5%, mais 17,5% de multa, num total de 35%. Uma parte da arrecadação obtida com esse pagamento seria destinada à criação de um fundo de compensação para os estados pela reforma do ICMS. No entanto, o relator acabou com essa vinculação e ainda reduziu os percentuais para 15% de Imposto de Renda e 15% de multa, chegando a um total de 30%.

Segundo técnicos da área econômica, não há objeção do governo à redução dos percentuais para 30%. No entanto, o governo é contrário ao fim da vinculação ao fundo do ICMS. Quando decidiu propor a repatriação, a equipe do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, tinha como principal objetivo reforçar o caixa da União e destravar a reforma tributária. A vinculação de parte dos recursos para os estados era o atrativo para fazer a medida ser aprovada no Congresso.

ÁREA ECONÔMICA TEME REPERCUSSÃO NEGATIVA

O Palácio do Planalto tentou convencer o relator a manter a vinculação ao fundo do ICMS, mas não obteve sucesso. O relatório de Manoel Júnior determina que os valores serão divididos de acordo com os critérios do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

— O fundo não foi sequer criado, e acho que os critérios do FPE e do FPM são mais justos. Esses recursos são finitos, não há motivo para ficar num fundo específico. O governo pediu para eu rever, mas eu disse que não iria reconsiderar — afirmou Manoel Júnior.

A manutenção do texto do relator não é um problema para a área política do governo. Mesmo com as mudanças, é preferível ver a matéria aprovada. Um auxiliar presidencial afirmou que o Palácio do Planalto não vai interferir na redução da alíquota em 5%, nem na ampliação dos crimes anistiados.

Para a área econômica do governo, no entanto, há uma forte preocupação. Isso porque existe um temor de que o Brasil passe a ser visto internacionalmente como o país leniente com desvios que estão facilmente ligados a atividades como tráfico de drogas e armas, num momento em que o mundo caminha na direção contrária.

Outra preocupação dos técnicos é que, uma vez aprovada, a proposta possa interferir em investigações como as da Lava-Jato, que revelou um esquema de corrupção na Petrobras. Um ponto que não estava claro no texto do governo era a possibilidade de doleiros terem direito ao benefício (anistia).

No relatório isso não é permitido, a não ser que haja um vínculo formal de trabalho com a empresa que aderiu ao programa. O relatório dos deputados também fixou, para efeito de cálculo, a cotação do dólar em 31 de dezembro de 2014 (R$ 2,65) e não o do dia da adesão ao programa (ontem, por exemplo, a cotação no câmbio oficial era de R$ 3,91).

 

‘Há insegurança sobre o que seria de origem lícita’

 

BRUNO GÓES

 

Os envolvidos na Lava-Jato podem ser beneficiados pela lei de repatriação?

Se há envolvidos na Lava-Jato com algum dinheiro de origem lícita no exterior, e se eles forem contemplados pela lei, aí sim.

Mas a Receita terá condições de atestar se a origem do dinheiro é lícita ou ilícita?

Isso é um problema do projeto de lei, porque há uma insegurança sobre o que seria de origem lícita ou não. Não há uma determinação de quais documentos a Receita acha adequados para mostrar por A+ B porque aquilo seria lícito ou não. (O beneficiário) precisa fazer uma declaração de que os bens são lícitos, e a Receita precisa aceitar aquela declaração como verdadeira. Em um prazo de cinco anos, se a Receita achar que a declaração é falsa, ela pode fazer uma representação para fins criminais contra o contribuinte, para que ele seja processado.

A inclusão do relator de anistiar outros crimes é correta?

Sob uma perspectiva criminal, sim. Eles incluíram crimes meios para a prática final, que seria evasão e sonegação. Se você entender que esses crimes todos são ligados à sonegação, como o Congresso entende, a inclusão é boa sob o ponto de vista de que mais arrecadação você terá quanto menos punições houver.

O projeto diz que serão anistiados todos os que atuaram para mandar o dinheiro ao exterior. Isso afeta a Lava-Jato?

Alguns dos processados na Lava-Jato tinham offshores não declaradas para lavar dinheiro. Por isso que o governo deve estar querendo tirar isso (a anistia a outras pessoas). Há intermediários até a ponta do caminho do dinheiro. Mas, se você quer extinguir a lavagem do beneficiário, teria também que extinguir a lavagem feita por terceiros. Se não, haverá um descompasso. Um seria beneficiado e outro seria condenado. O governo está batendo nessa tecla porque você vai livrar doleiro, e não simplesmente o contribuinte que mandou o dinheiro lá para fora. Se você levar em consideração as audiências, advogados pensaram: “Vamos aproveitar e arrecadar o máximo que a gente puder”. Agora, se você for pensar que a gente tem que repatriar o dinheiro e não temos que ajudar doleiro, aí o governo tem razão.

 

‘Cem por cento desse dinheiro é ilegal’, diz parlamentar aliado de Cunha

 

JÚNIA GAMA

 

Prestes a ser votado na Câmara, o projeto da repatriação de recursos gerou críticas duras de deputados da oposição. O líder do Solidariedade, Arthur Maia (BA), foi o mais contundente. Diante do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), na reunião do colégio de líderes que pautou a análise do texto para hoje, Maia afirmou que o projeto traria anistia a quem mantém dinheiro ilegal no exterior.

— É muito ruim para o Brasil votar um projeto dessa natureza. Porque não existe ninguém no Brasil que tenha ganho dinheiro honesto e tenha mandado esse dinheiro para fora (sem declarar), porque ele se torna ilegal. Cem por cento desse dinheiro é ilegal. Se é fruto de corrupção ou não, depois tem que analisar. Mas repatriar sem fazer análise de onde vêm esses recursos é uma chacota com o trabalhador brasileiro. O déficit moral que vai decorrer desse projeto é muito maior que o déficit fiscal que o governo tem hoje — disse Maia, ao sair da reunião.

O deputado negou que Cunha, de quem é aliado, tenha atuado pela aprovação do projeto. Segundo as denúncias contra o peemedebista, o presidente da Câmara manteria milhões em contas secretas na Suíça abastecidas por dinheiro de propina.

— O presidente da Câmara não tem nada a ver com isso. Porque o projeto é enviado pelo Executivo e tem urgência constitucional. O presidente da Câmara não tem alternativa senão pautá-lo — disse Maia.

O líder do DEM, Mendonça Filho (PE), pediu o adiamento da votação para a próxima semana. Alegou que considera o projeto bastante “controvertido”. E afirmou que o partido analisará as posições do governo e do relator e que pretende fechar hoje uma posição de bancada.

— É preciso estar atento para não chancelar a legalização de recursos oriundos de corrupção. Tem que ver se é uma anistia envolvendo o conceito de recursos não contabilizados, o caixa dois. É uma fronteira tênue que separa os recursos de origem duvidosa daqueles recebidos legitimamente — disse o deputado.

Segundo aliados de Cunha, gerou “estranhamento” entre parlamentares o fato de Arthur Maia ter criticado tão duramente o projeto. Além das censuras ao texto da repatriação durante a reunião de líderes e em entrevista coletiva, o líder do Solidariedade também fez críticas durante almoço, ontem, na residência de Cunha, quando o relator do texto, Manoel Júnior (PMDB-PB), foi chamado para explicar o projeto aos colegas. Deputados da base chegaram a pedir que Arthur Maia recuasse, mas ele manteve a posição.