Novo governo argentino deve priorizar ajuste cambial

Marli Olmos 

22/10/205

Há meses o mercado internacional aguarda com ansiedade e algum otimismo a troca de governo na Argentina. Mas as dificuldades tendem a tornar a transição difícil. Para analistas, o acúmulo de problemas que exigem correção imediata indica que o próximo presidente terá pouca margem de manobra e estará sob pressão logo nos seus primeiros dias de mandato. A escassez de reservas é o que mais preocupa.

Quando a presidente Cristina Kirchner iniciou o seu segundo mandato, o país tinha US$ 46,4 bilhões em reservas. Ela deixará ao sucessor US$ 26 bilhões. Os dólares representam apenas a metade. Segundo economistas, o equivalente a US$ 13 bilhões é formado por moeda chinesa, o yuan, que entrou no país por meio de "swap". O Banco Central da Argentina perde, em média, US$ 100 milhões por dia em reservas.

Ajuste e câmbio parecem palavras proibidas no vocabulário dos candidatos à Presidência. Mas, fora do ambiente da campanha eleitoral, a questão cambial transformou-se em debate do dia a dia de políticos e economistas.

À primeira vista, ajustar câmbio, acabar com a restrição à compra de dólares e negociar com os credores que venceram ação na Justiça nos Estados Unidos são as medidas mais emergentes. É a fórmula ideal para reconduzir o país ao mercado internacional e reativar a economia. Mas a equação não é tão simples, segundo os analistas.

A maioria é contra uma forte desvalorização cambial por temer os efeitos na inflação. "Veja o que aconteceu em janeiro de 2014. O peso foi desvalorizado em quase 20% e houve um impacto de 15 pontos na inflação. Saímos de uma inflação anual de 27% em 2013 para 40%", diz Marco Lavagna, economista que seguiu a vocação do pai, o ex-ministro Roberto Lavagna, e que concorre nessas eleições a uma vaga de deputado federal.

É difícil saber ao certo de quanto foi a inflação no ciclo kichnerista, que começou em 2003, com Néstor, marido de Cristina. O respeitado instituto público que fazia essa medição, o Indec, sofreu intervenção do governo logo que Cristina assumiu e desde então os índices oficiais, como PIB e até pobreza, transformaram-se numa fantasia. Consultorias independentes fazem seus próprios cálculos. De janeiro a setembro, a inflação está em 14,4% pelos dados oficiais e 25,9% segundo o chamado IPC-Congresso, criado pela bancada opositora no Congresso com base nas projeções independentes.

Devolver ao Indec os técnicos que Cristina demitiu é uma das medidas urgentes para o próximo governo recuperar a credibilidade do país, diz Lucas Llach, economista e historiador. Ninguém espera dificuldade para acabar com a maquiagem dos índices econômicos.

Menos fácil será, dizem os analistas, resolver a questão dos chamados "holdouts". Cerca de 7% dos títulos referentes ao calote de 2001 ficaram de fora da reestruturação da dívida. Um grupo de detentores desses papéis, que venceu ação na Justiça americana, quer receber o valor integral dos títulos e aguarda o novo presidente para retomar a negociação que Cristina rejeitou.

O economista Aldo Abram, da Libertad & Progreso, prevê que a negociação pode levar até nove meses. "No mínimo seis", diz Lavagna. "Os 'holdouts' podem aceitar menos, mas é preciso chegar a um valor razoável para compensar o longo tempo de litígio", afirma o economista Lorenzo Gravina, diretor da Ecolatina.

O candidato líder nas pesquisas, o governista Daniel Scioli, tem insistido que os "holdouts" não estão nas suas prioridades. A postura faz, claro, parte do jogo. Mas o ambiente de negociação de um país em "default" e com baixo nível de reservas favorece os credores.

Outra dificuldade será recompor o comércio exterior. A queda no preço das commodities, a crise no Brasil e a retração de demanda da China fizeram as exportações desabar 14% no acumulado de janeiro a agosto, o que levou a um saldo na balança de pouco mais de US$ 1,4 bilhão, 70% a menos do que há um ano.

Analistas concordam que o próximo presidente, seja quem for, eliminará as pesadas taxas aos produtos exportados, da mesma forma que tende a afrouxar as restrições à entrada de importados. Lavagna calcula que, para cada ponto de crescimento do PIB, o país necessita gastar US$ 2 bilhões em insumos importados para abastecer a indústria.

Outra dúvida é como voltar a atrair investimentos. Os analistas preveem um país de novo atrativo para o capital estrangeiro nos primeiros meses de nova gestão, desde que o governo dê sinais de mudança de rumo, com questões que nunca estiveram na agenda do kirchnerismo, como metas de inflação. Somente Vaca Muerta, a reserva gigante de xisto no sul do país, precisa de algo em torno de US$ 20 bilhões para deslanchar.

A mistura de uma política fiscal expansionista, estagnação da atividade e inflação alta, entre outras anomalias, transforma a economia argentina numa herança pesada. Com as portas ao mercado internacional fechadas, a emissão monetária passou a sustentar a despesa pública nos últimos anos de um governo que gastou forte em programas sociais.

Quando Cristina deixar o governo, o déficit fiscal estará em torno de 7% do PIB, segundo a maior parte dos economistas. É difícil também não pensar em ajuste recessivo num país onde 36% do PIB são gastos com subsídios às tarifas públicas. "Nossos problemas se transformaram numa bola de neve, que começou a rolar montanha abaixo há muito tempo", diz Abram.

Valor econômico, v. 16 , n. 3867, 22/10/2015. Brasil, p. A12