De evangélicos a feministas contra Cunha

 

CÁSSIO BRUNO JÚNIA GAMA 

O globo, n. 30033, 29//10/2015. País, p. 4

 

Evangélicos divulgaram manifesto assinado por pastores pedindo a renúncia do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. No Rio, feministas aderiram ao “Fora Cunha”. A oposição ameaça boicotá-lo caso não abra processo de impeachment contra a presidente Dilma em duas semanas. -RIO E BRASÍLIA- De líderes evangélicos a defensoras dos direitos da mulher, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), foi alvo ontem de protestos no Rio e em Brasília que, em comum, pediram sua saída do cargo. No Rio, a manifestação, convocada nas redes sociais, também tinha como alvo o relatório aprovado na CPI do Aborto, da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), que, entre outras conclusões, quer que os hospitais sejam obrigados a notificar à polícia todos os casos de aborto atendidos, mesmo os permitidos por lei. O ato, que, segundo a Guarda Municipal e a PM, reuniu cerca de 500 pessoas, também defendeu a renúncia de Cunha. O parlamentar, evangélico e contrário ao aborto, foi chamado de ditador.

DOMINGOS PEIXOTO“Mulheres contra Cunha”. No Rio, atriz Luciana Pedroso fez uma performance contra a pauta política conservadora

Em Brasília, representantes evangélicos apresentaram ontem na Câmara um manifesto com 300 assinaturas de bispos, pastores e integrantes da comunidade cristã — incluindo metodistas, anglicanos, luteranos, batistas e da Assembleia de Deus — em que também pedem o afastamento de Cunha da presidência da Câmara. Hoje, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) vai se manifestar sobre a situação nacional, e a expectativa é que haja um apelo para que Cunha se afaste. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, reuniu-se anteontem com bispos da CNBB; segundo integrantes do encontro, suas informações foram decisivas para a entidade “construir um posicionamento” sobre o caso.

No manifesto divulgado ontem, os líderes evangélicos dizem que as ações de Cunha merecem “repúdio” e que as denúncias contra ele “inviabilizam” sua permanência à frente da Câmara. “As ações do deputado Eduardo Cunha, atual presidente da Câmara dos Deputados e que se identifica como evangélico, merecem repúdio. As denúncias de corrupção e o envio de recursos públicos para contas no exterior inviabilizam a permanência do deputado Eduardo Cunha no cargo que ocupa, uma vez que não há coerência e base ética necessária a uma pessoa com responsabilidade pública.”

No Rio, os manifestantes caminharam pela Avenida Rio Branco até a Câmara dos Vereadores. Mulheres gritaram palavras de ordem em frente ao prédio onde fica o escritório político de Cunha. Elas carregavam faixas como “Quem manda no meu corpo sou eu” e “Deputados, tirem as mãos dos nossos úteros”, referindo-se à CPI da Alerj, e outros em que se lia “Fora, Cunha” e “Mulheres contra Cunha”.

—É a nossa escolha sempre (abortar ou não). O corpo é nosso. O protesto é por toda a política conservadora (de Cunha). Ele não nos representa — afirmou a psicóloga Lívia Cretton, de 30 anos, moradora de Copacabana, que levou o filho Tales, de 9 meses, e ficou na primeira fila da passeata.

Entre os participantes, foi possível ver pessoas com camisas e bandeiras de partidos políticos, como PSOL, PSTU e o PV, além de integrantes de movimentos sociais. A atriz Luciana Pedroso, de 30 anos, nua e com o corpo pintado de vermelho, fez uma performance e foi muito aplaudida. Houve um princípio de confusão após um grupo de jovens pichar as paredes da Câmara. O tumulto foi controlado pela Guarda Municipal. OPOSIÇÃO DÁ ULTIMATO A CUNHA Integrantes do DEM, do PSDB e do PPS na Câmara também partiram para uma ofensiva contra Cunha. Incomodados com a posição dúbia que vem sendo adotada por ele, deram duas semanas de prazo para que o presidente da Câmara despache o pedido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff.

— São duas semanas, senão, somos nós que vamos partir abertamente para cima dele — disse um parlamentar da oposição.

Uma estratégia já pensada é entrar em obstrução permanente em plenário, enquanto Cunha se mantiver no cargo. Segundo deputados tucanos, a ala que defende que o partido assuma uma posição firme e intransigente pela saída de Cunha já é majoritária.

O PT não deverá se posicionar hoje, na reunião de seu Diretório Nacional, sobre a situação de Cunha. A aposta do ex-presidente Lula e da corrente majoritária petista é que o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República tornem insustentável sua permanência à frente da Câmara. Até lá, eles não querem se indispor com ele.

 

‘Deputado não pode negar evidências como essas’

 

ANDRÉ MIRANDA

 

Perito no sistema bancário suíço, o sociólogo Jean Ziegler diz que não há como Cunha alegar inocência e dizer que as contas naquele país não são suas. Como ex-deputado na Suíça e autor de livros sobre o sistema bancário do país, minha primeira reação é de revolta. E não por causa do Eduardo Cunha ou dos outros envolvidos. Amo o Brasil, e é nojento imaginar que políticos eleitos podem ter roubado um país tão incrível como o seu. Mas minha maior revolta é saber que esse dinheiro veio para os bancos suíços. Em todos os escândalos mundiais, os bancos suíços aparecem como instrumento de lavagem de dinheiro. Há uma lei específica contra lavagem de dinheiro na Suíça, mas, em todos os escândalos, os bancos saem impunes. Os promotores suíços podem agir sem que seja necessário outro país entrar com uma ação, mas eles não o fazem.

ANA BRANCOJean Ziegler. “É tolice (Cunha) dizer que não é verdade que o dinheiro existe”

Mas as autoridades suíças foram essenciais para identificar as contas que seriam de Cunha.

Não foi assim. Eles não abriram um inquérito. Só deram continuidade ao trabalho daquele juiz do Paraná, o Sérgio Moro, que transmitiu informações para a Suíça sobre número de uma conta, um nome e uma localidade. Os bancos suíços não puderam negar a informação. Ainda pode haver milhões escondidos em alguma offshore, sob um nome falso. Quem foi eficiente nesse caso foram os promotores brasileiros, não os suíços, que só agiram quando apareceram evidências que não poderiam ser negadas. Por eles, as próprias leis do país não seriam aplicadas.

O que permite que os bancos suíços desrespeitem a lei?

Os bancos são muito poderosos na Suíça, formam uma oligarquia. São mais poderosos do que qualquer departamento de Justiça, qualquer Parlamento, promotor. E são muito bem-sucedidos: a Suíça tem 8 milhões de habitantes, 42 mil quilômetros quadrados, sem matéria-prima, sem petróleo e, ainda assim, é um dos países com maior renda per capita do mundo. Isso só acontece porque a matéria-prima da Suíça é o dinheiro de nações estrangeiras. Os bancos suíços são muito competentes em transportar o dinheiro de estrangeiros. Cunha ou qualquer outro que queira trazer o dinheiro para a Suíça não costuma ter uma expertise financeira para tal. Mas os bancos suíços sabem como fazer. Têm um mecanismo para trazer o dinheiro roubado da Petrobras secretamente para a Suíça.

Da forma como fala, os bancos suíços parecem um tipo de máfia.

Não chegam a ser uma máfia. Sei que é difícil entender a diferença, mas, por um lado, os banqueiros suíços têm uma moral muito forte. O problema é que eles são totalmente cínicos. São criminosos, porque ajudaram a criar instrumentos que permitem roubar dinheiro de outros países. Mas, ao mesmo tempo, são bastante honestos em tomar conta daquele dinheiro. O que querem é ter o máximo de lucro, por isso aceitam que se traga dinheiro para a Suíça. Acontece que um depósito corrupto fica completamente na mão do banco. É o que os americanos chamam de cliente aprisionado. É o sonho para qualquer banco suíço: o dinheiro é sujo, e o cliente não pode reclamar de muita coisa. Então, o banco cobra uma comissão de 30% a 50%; a comissão normal é de 1% ou 2%.

Os bancos suíços sempre sabem de onde vem o dinheiro?

Fui deputado no Parlamento Federal. A lavagem de dinheiro não era crime aqui. Há oito anos, mudamos a lei e criamos uma regra que obriga os bancos a pedirem informações a seus clientes sobre a origem do dinheiro. Depois, criamos outra lei que obriga o banco a rejeitar depósitos de certos valores feitos por pessoas politicamente expostas (termo para designar agentes públicos, seus parentes e colaboradores próximos), já que um político que vive de salário público não costuma ter US$ 10 milhões. Essas leis foram completamente violadas no escândalo da Petrobras. Se um político for milionário por herança de família, precisa provar, para deixar seu dinheiro num banco suíço. Se não provar a origem legal, os bancos precisam recusar o depósito.

Após tantos escândalos e o caso SwissLeaks, não houve mudanças no sistema bancário suíço?

Por que haveria? A quem interessaria haver mudanças? Houve alguma pressão agora da União Europeia e dos EUA, por causa do SwissLeaks. Os bancos suíços organizaram evasão fiscal para americanos ricos durante 50 anos, até que o governo americano descobriu e abriu um inquérito internacional contra os bancos suíços, que tiveram que colaborar e pagar multas. Os EUA pressionaram muito e disseram que os bancos perderiam sua licença para operar na América; então eles tiveram que parar de permitir a evasão fiscal de cidadãos americanos. Também houve pressão da União Europeia, e foi criado um mecanismo de troca automática de informações. Mas a relação com Brasil, Japão, Cingapura e outros países segue a mesma.

Não poderia haver uma pressão desse tipo do Brasil ou de um bloco da América Latina?

Acho impossível. Primeiro, porque duvido que as classes dominantes na Colômbia, por exemplo, iriam se juntar a esse tipo de movimento. Ou as classes dominantes brasileiras. Além disso, os únicos que têm os meios de pressionar são EUA e União Europeia.

Desde que seu nome começou a aparecer no escândalo da Petrobras, Cunha se diz inocente. É possível que não tenha cometido crime?

Pergunto como é possível alegar inocência. Há US$ 2,4 milhões no nome dele e de sua mulher. Cunha poderia até dizer e provar que foi só evasão fiscal e que o dinheiro não é sujo. Poderia alegar que ganhou na loteria, não quis pagar os impostos no Brasil e mandou o dinheiro para o exterior. Mas é tolice dizer que não é verdade que o dinheiro existe. As evidências são totalmente claras. Não entendo como um homem que preside a Câmara de um dos maiores países do mundo pode tentar negar evidências como essas. É impressionante. E, se não puder provar a origem do dinheiro, então é oriundo de corrupção.