Cirrose fiscal

 

RUBENS PENHA CYSNE

O globo, n. 30033, 29//10/2015. Opinião, p. 19

 

As discussões recentes sobre dominância fiscal (de forma simplificada, a inflação futura fora do controle do Banco Central) são precipitadas. Estamos, entretanto, há anos, convivendo com um novo e nocivo aprendizado, uma espécie de cirrose fiscal. Esta decorre da união de gastos públicos demasiado elevados com câmbio flexível.

Há alguns importantes progressos desde o fim do ano passado. Primeiro, a modificação na composição de demanda do PIB, passando-se de um déficit da balança comercial de US$ 6 bilhões em 2014 para um superávit previsto de US$ 12 bilhões em 2015. Segundo, a correção parcial dos preços administrados pelo governo, que devem crescer em torno de 17% em 2015, contra uma inflação prevista abaixo de 10%.

Terceiro, a colocação da questão fiscal como foco das discussões. Quarto, o fato de não se contemplarem soluções fáceis, porém inadequadas. Cabe apenas lembrar que, para evitar maior recessão, a ação fiscal deve ser centrada principalmente nos anos à frente, ainda que com ações no presente.

Uma economia encontra-se em dominância fiscal quando, mesmo elevando os juros, o governo não consegue colocar junto ao público títulos da dívida na quantidade suficiente para pagar suas contas. Neste contexto, o Banco Central precisa agir gerando um dado valor de imposto inflacionário. Por este motivo, ele perde a capacidade de predeterminar com credibilidade a meta de inflação.

A julgar pela inflação abaixo de 6,5% para 2016 projetada pelo Relatório Focus, o mercado não está atualmente enxergando esta situação. Não obstante, preocupam as previsões que apontam trajetórias mais elevadas da inflação, bem como a dívida pública bruta podendo alcançar 80% do PIB em 2018.

Persiste, entretanto, o problema da “cirrose fiscal”, que mina, pouco a pouco, o setor produtivo. O uso apenas dos juros para conter a inflação tende a reduzir exatamente investimentos e exportações, aqueles que mais incentivam ganhos de produtividade.

Até 1999, quando o câmbio era fixo, o problema não era de cirrose, mas de “infartos fiscais”, traduzido por súbitas maxidesvalorizações da moeda nacional. Com câmbio flexível, o excesso de gastos públicos opera mais como uma cirrose, que se estende sorrateira por longos anos, minando a competitividade internacional.

A elevação recente do dólar não precisa ser combatida com manobras. O país pode conviver com um controle da inflação que não requeira o artifício de colocar aqui dentro, para pagamento por futuras gerações, um valor superior a US$ 100 bilhões (déficit na conta-corrente em 2014) de oferta adicional de bens e serviços temporariamente emprestados por não residentes.

Abba Lerner dizia que cada transação econômica voluntariamente realizada é uma solução para um potencial problema político. Com preços no lugar, inclusive do dólar, resolvem-se também problemas de escassez.

Se há dominância, ela é política, não fiscal. Fiscal é a solução para o problema.