Fim de ciclo político

 

JANAÍNA FIGUEIREDO

O globo, n. 30029, 25//10/2015. Mundo, p. 45

 

As eleições na Argentina, hoje, põem fim a 13 anos de governo dos Kirchner, deixando incerto o futuro do seu projeto político. Nem o candidato da presidente Cristina, Daniel Scioli, é ligado a seu grupo. Com poucas palavras, o diretor da Biblioteca Nacional argentina e membro do grupo de intelectuais kirchneristas Carta Aberta, Horácio González, resumiu a sensação de muitos de seus companheiros em relação à eleição do sucessor da presidente Cristina Kirchner: “Votaremos desgarrados.” Assim estão os kirchneristas, apesar do respaldo de sua líder ao governador da província de Buenos Aires e favorito, Daniel Scioli, que hoje deverá testar sua força nas urnas e tentar conquistar um triunfo contundente no primeiro turno. Mas mesmo que Scioli supere 40% dos votos e consiga uma diferença superior a dez pontos percentuais em relação ao principal adversário, o prefeito portenho Mauricio Macri, o clima entre kirchneristas, peronistas, opositores e analistas é de final de ciclo. Depois de quase 13 anos, não haverá um Kirchner na Casa Rosada e o futuro do projeto de poder iniciado pelo ex-presidente Néstor Kirchner, em 2003, é incerto.

— Acho que esse futuro dependerá mais do próximo governo do que de Cristina. Se quem vier der certo, o kirchnerismo perderá espaço. Caso contrário, poderia ressurgir — afirma o analista político Carlos Fara, diretor da Fara e Associados.

Para ele, atualmente, ninguém tem a liderança da presidente, com Cristina deixando o poder com uma imagem positiva em torno de 50%:

— A convivência com o próximo governo será complicada, porque a herança deixada, sobretudo em matéria econômica, obrigará Scioli ou quem vier a fazer coisas (leia-se aplicar um ajuste) que o kirchnerismo não vai gostar.

Na reta final da campanha, Scioli, Macri e Sergio Massa anteciparam mudanças em matéria econômica. Os três candidatos, Macri com mais ênfase, mostraram-se preocupados com o calote da dívida. Seus economistas de confiança confirmaram que, caso cheguem ao governo, buscarão um acordo com os chamados fundos abutres, que estão litigando contra a Argentina em tribunais americanos. Trata-se de uma iniciativa também defendida pelo principal assessor de Massa — o ex-ministro da Economia do primeiro governo Kirchner, Roberto Lavagna — e que está na contramão do manual de políticas kirchneristas.

— Aliados de Scioli, como o governador da província de Salta, Juan Manuel Urtubey, também se referiram à necessidade de recuperar o Indec (o IBGE local, acusado de manipular as estatísticas), um dos pilares da estratégia econômica atual — diz o jornalista Mariano Obarrio, do “La Nación”.

‘LA CÁMPORA NÃO É FORTE COMO PARECE’

A era kirchnerista construiu o que muitos chamam de um “relato” baseado em fatos reais — e outros um pouco exagerados e modificados por seus protagonistas. Com Néstor e Cristina foram anuladas as leis de anistia; reestatizadas (em alguns casos expropriadas) empresas públicas; renegociada a dívida pública (uma parte ainda em situação de calote) e aprovadas leis de vanguarda como o casamento gay.

Estas são algumas das bandeiras do kirchnerismo, que serviram como base para o nascimento de um movimento juvenil, o La Cámpora, que, com Cristina, ocupou importantes espaços em todos os poderes do Estado. Este setor, como outros do kirchnerismo, não confia em Scioli e, como Horácio González, votará “de cara emburrada”. Para ele, a grande incógnita é saber até que ponto o kirchnerismo poderá condicionar Scioli.

— Acho que estamos vivendo o fim de um ciclo político porque, mesmo que ganhe Scioli, sua aliança é mais forte com o peronismo clássico, os prefeitos e congressistas que nos últimos anos se incomodaram com as políticas e a presença da ala ultra-kirchnerista — assegura Obarrio.

Hoje também será renovada a metade da Câmara e um terço do Senado, além de governadores em 11 províncias, como Santa Cruz, Entre Ríos, Buenos Aires, Jujuy e Chubut. A eleição mais importante para o kirchnerismo é a de Buenos Aires, onde vive um terço do eleitorado nacional. Na província mais importante da Argentina, governada por Scioli desde 2007, a aposta é ter o atual chefe de Gabinete, o polêmico Aníbal Fernández — denunciado recentemente por supostos vínculos com o narcotráfico — como homem forte. Fernández é um dos mais antigos aliados da família Kirchner e sua vitória seria uma ótima notícia para Cristina e o núcleo duro do kirchnerismo.

— Scioli vai tentar ter sua estrutura de poder própria, vai tentar “peronizar” o governo. Já o kirchnerismo fará o possível para não perder o controle. Haverá muita tensão interna — opina a jornalista Natasha Niebieskikwiat, do “Clarín”. — La Cámpora não é um movimento ideológico forte como parece. São jovens favorecidos pelos recursos do governo, e isso vai acabar.

 

Batalha pela terra natal de Néstor

 

Sem Néstor Kirchner, falecido em 2010, vítima de um ataque cardíaco, e com Cristina iniciando seus últimos dois meses de mandato, a família presidencial argentina tentará hoje manter o poder em seu feudo, a província de Santa Cruz, governada pelo patriarca entre 1991 e 2003. O desafio é encarado por Alicia, irmã do ex-presidente e ministra do Desenvolvimento Social, que disputará o governo provincial. Já Máximo, filho mais velho da presidente e líder do movimento de jovens La Cámpora, concorrerá, pela primeira vez, a uma vaga no Congresso do país.

A eleição na província patagônica não será fácil para a cunhada da presidente. Segundo pesquisas, seu principal adversário, o opositor Eduardo Costa, tem chances de derrotá-la. No encerramento da campanha, a candidata criticou a gestão do atual governador, Daniel Peralta, que, apesar de ter sido o candidato do kirchnerismo em 2011, se distanciou do governo e este ano enfrentou uma onda de protestos de trabalhadores estatais.

— Não souberam aproveitar os esforços de Néstor e Cristina na província — disse a ministra e candidata, numa alfinetada a Peralta.

Para o kirchnerismo, preservar o poder em Santa Cruz é essencial, principalmente por uma razão simbólica. Perder a terra natal de Kirchner no momento em que Cristina se prepara para deixar a Casa Rosada seria um golpe difícil de digerir. Diante das incertezas sobre o futuro da chefe de Estado, vencer a eleição no feudo kirchnerista é considerado um objetivo estratégico.

— Estamos nos consolidando como uma força política, apesar dos ataques e embates constantes — afirmou Máximo na campanha.

O filho da presidente, que somente este ano decidiu iniciar uma carreira política pública (já que vem atuando nos bastidores há anos), pretende liderar a bancada do kirchnerismo duro na Câmara, ao lado de companheiros como o atual ministro da Economia, Axel Kicillof.

A relação entre Máximo e o candidato do governo à Presidência, Daniel Scioli, tem sido cordial, embora fria. O filho da presidente esperava que seu movimento obtivesse mais espaço num eventual gabinete de Scioli, mas o candidato optou por pessoas de seu círculo íntimo.