Uma falha de R$ 6,6 milhões

 

GERALDA DOCA E HELOISA TRAIANO

O globo, n. 30039, 04//11/2015. Economia, p. 19

 

Do total de 1,2 milhão de empregadores cadastrados, só 134 mil conseguiram imprimir guia

PABLO JACOBProblema. Aos 81 anos, Maria Thereza precisa de empregada e quer cumprir suas obrigações, mas teme que a dificuldade para pagar vire regra: “Vai ser assim todo mês?”

A Receita Federal e o Serpro — que desenvolveu o site eSocial a um custo de R$ 6,6 milhões — reconheceram ontem que o sistema para emitir a guia do FGTS dos domésticos apresentou falhas e instabilidade. Mesmo assim, a Receita descartou adiar o prazo de vencimento, que termina depois de amanhã. O Serpro recomendou aos patrões insistirem: “Sugiro tentar novamente. Não vou mentir para vocês. Estamos com instabilidade no sistema e sabemos que o desgaste é grande”, afirmou Andre de Césero, diretor do órgão. -BRASÍLIA E RIO- A três dias do prazo final para o pagamento obrigatório do FGTS para os trabalhadores domésticos, que vence na sexta-feira, o sistema do Simples Doméstico continuou a apresentar problemas que impediram milhares de empregadores de emitir a guia, que é a única forma de recolher os encargos. Apenas 134 mil ou 13% do 1,2 milhão de patrões que cadastraram no site eSocial conseguiram imprimir o documento entre domingo — primeiro dia de acesso — e às 17 horas de ontem. Mas, segundo o subsecretário de Fiscalização da Receita Federal, Iágaro Martins, houve melhora no sistema, e a proposta de adiar o prazo de vencimento dos tributos, que chegou a ser discutida ontem diante da enxurrada de queixas de contribuintes, foi descartada por enquanto.

Técnicos do governo aconselharam os contribuintes a voltarem do trabalho para suas casas e continuarem tentando imprimir a guia de pagamento. Quem tentou fazer isso, ontem à noite, porém, não conseguiu sequer tentar porque o site do eSocial simplesmente saiu do ar no começo da noite e, até o fechamento desta edição, ainda continuava indisponível.

‘SUGIRO TENTAR NOVAMENTE’, DIZ DIRETOR DO SERPRO

Em caso de instabilidade, destacou Iágaro, o empregador deve dar um tempo de uma hora e insistir novamente. Foi o mesmo conselho de Andre de Césero, diretor do Serpro, empresa que foi contratada por R$ 6,6 milhões para desenvolver o sistema de pagamento dos novos direitos dos trabalhadores domésticos.

— Sugiro fazer o mesmo, tentar novamente. Não vou mentir para vocês. Estamos com instabilidade no sistema e sabemos que o desgaste é grande — disse Césero.

Que o diga Maria Thereza Sombra, de 81 anos, do Rio de Janeiro. Ela achou que suas dificuldades tinham acabado na semana passada, quando conseguiu concluir o cadastramento da sua empregada no eSocial. Mas, após dois dias de tentativas, erros no sistema não permitem que ela imprima a guia para efetuar o pagamento.

— Foi difícil fazer o cadastro logo de início, quando disseram que a minha funcionária não existia. Depois de dois dias inteiros, conseguimos resolver o problema. Mas, agora, nós duas não conseguimos imprimir o boleto de jeito nenhum. Preciso de uma empregada em casa para cuidar de mim e quero cumprir a minha obrigação, mas o sistema do governo não está preparado para isso. Já vi várias pessoas na mesma situação. Será que isso vai acontecer todo mês?— questiona.

‘GOVERNO DEVIA ASSUMIR SEUS ERROS’

Em São Paulo, a arquiteta Sonia Silva Gomes fez o cadastro com antecedência, na tentativa de evitar os problemas. No entanto, já passaram quatro dias desde a primeira tentativa de imprimir as guias e ela continua perdendo horas do seu dia na frente do computador.

— Estou há quatro dias tentando diariamente emitir a guia, consegui de dois funcionários, mas ainda falta a última. A sensação é a de que o programa foi feito na última hora. O tempo que você perde é precioso, são horas na frente do computador. Quando dá erro, tem de começar tudo de novo. Isso porque estou acostumada a usar o computador para operações do banco, então fico imaginando a dificuldade de quem não tem o mesmo hábito — diz.

O subsecretário da Receita admitiu que o sistema continua passando por instabilidades e assegurou que a equipe técnica vai trabalhar nas próximas 24 horas para sanar os problemas. Só depois desses ajustes poderá ser anunciado um plano B que permita aos empregadores recolherem os novos encargos sem multas.

O presidente da ONG Doméstica Legal, Mário Avelino, voltou a insistir na prorrogação do prazo de pagamento. Segundo ele, o contribuinte não deveria pagar a multa pelo atraso no recolhimento devido a falhas no sistema. A penalidade varia entre 0,33% sobre o valor a ser recolhido por cada dia de atraso, até o limite máximo de 20%.

— O governo deveria assumir seus erros e não jogar a responsabilidade para o contribuinte.

 

Dois empregados, uma mesma guia e problemas à vista

 

Quem tem mais de um empregado doméstico e consegue imprimir a guia única para pagamento do FGTS e demais encargos sobre os salários esbarra em mais um problema: o sistema gera apenas um documento para todos os funcionários de cada empregador, com o valor total a ser pago por todos os tributos. Ou seja, não há uma discriminação dos impostos recolhidos para cada funcionário.

— No dia que o empregado deixar o trabalho, se ele tiver alguma dúvida sobre o que foi recolhido, terá de buscar o comprovante na própria fonte. No caso do FGTS, por exemplo, essa fonte é a Caixa. Já o empregador também terá de fazer o mesmo para comprovar que pagou os tributos correspondentes àquele funcionário — diz Pablo da Silva Alexandre, chefe do departamento pessoal de um escritório de contabilidade do Rio.

Segundo a Receita Federal, o patrão poderá, após o pagamento, imprimir um extrato, no qual constará discriminados, os valores referentes a cada empregado. Mas a Receita não esclareceu como o trabalhador poderá ter o controle das contribuições pagas em seu nome. Os problemas no sistema foram discutidos ontem pelo comitê gestor do eSocial — formado pelo Ministério do Trabalho e Previdência, Receita Federal e Caixa Econômica Federal. Entre as alternativas possíveis está o adiamento do prazo de vencimento dos encargos do dia 6 para o dia 30 de novembro. Outra solução seria permitir o pagamento em formulários distintos, em vez da guia única, FGTS, INSS e demais tributos.