Um terço da propina de volta

 

CLEIDE CARVALHO E RENATO ONOFRE

O globo, n. 30036, 01//11/2015. País, p. 3

 

Quantia seria suficiente para pagar o valor-base do Bolsa Família a 31 milhões de beneficiários

A Operação Lava-Jato comprovou que R$ 7,2 bilhões foram desviados para pagamentos de propina no esquema criminoso investigado na Petrobras. Desse valor, R$ 2,4 bilhões já foram recuperados por meio dos acordos de colaboração e leniência firmados com delatores e empresas envolvidas, incluindo o pagamento de multas, informam CLEIDE CARVALHO e RENATO ONOFRE. Com essa quantia, seria possível construir 40 mil unidades do Minha Casa Minha Vida ou pagar o valor-base de R$ 77 do Bolsa Família para 31,2 milhões de beneficiários. Os números podem aumentar porque ainda há acordos sendo negociados com o Ministério Público. Os delatores do esquema de corrupção na Petrobras e parte das empresas envolvidas já devolveram, através de acordos, o equivalente a um terço dos R$ 7,2 bilhões que comprovadamente foram desviados para pagamentos de propina a políticos e dirigentes da estatal. Em 33 delações premiadas e três acordos de leniência, foram devolvidos R$ 2,4 bilhões. O levantamento, feito pelo GLOBO nas 31 ações que correm na Justiça, mostra que o valor obtido por meio de acordos de delação e de leniência, e ainda a título de multa, daria para pagar 31,2 milhões de benefícios do Bolsa Família (pelo valor mais baixo pago aos beneficiários).

Juntas, as três empresas que já assinaram acordos de leniência — Setal, Camargo Corrêa e a holandesa SBM — devolveram R$ 1,64 bilhão, mais da metade do valor recuperado pela Justiça. Entre os delatores, quem mais devolveu dinheiro até agora foi o ex-gerente da estatal Pedro Barusco, que sozinho entregou US$ 97 milhões, o que corresponde a R$ 381,1 milhões pela cotação do dólar da última quinta-feira. A segunda maior quantia foi devolvida pelo ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa: o equivalente a R$ 101,3 milhões.

Esse dinheiro devolvido fica, inicialmente, à disposição da Justiça. O juiz Sérgio Moro tem determinado que todo o dinheiro confiscado retorne aos cofres dos órgãos lesados. No caso da Petrobras, já foram feitas duas devoluções, que somam R$ 296 milhões. Esses valores estavam em contas de Costa e Barusco no exterior.

— O Ministério Público abriu mão de algumas condenações em troca de muito mais — diz o procurador da República Deltan Dallagnol, um dos porta-vozes da força-tarefa da Operação Lava-Jato e defensor das delações.

Na semana passada, em entrevista ao “Programa do Jô”, Dallagnol disse que o caso Lava-Jato quebrou todos os recordes de devolução de recursos para o país:

— Para se ter ideia, antes do caso Lava-Jato, tudo que foi recuperado no país e entrou nos cofres públicos, em todos os outros casos (de corrupção) juntos, somam menos de R$ 45 milhões.

R$ 1,1 BILHÃO AINDA ESTÁ BLOQUEADO

Dados da Secretaria de Cooperação Internacional do Ministério Público mostram que a Lava-Jato bloqueou no exterior, até 23 de outubro, US$ 433 milhões (R$ 1,7 bilhão) em dinheiro supostamente desviado da Petrobras ou de outros órgãos públicos. Até o momento, US$ 129 milhões (R$ 506,8 milhões) foram repatriados. O restante, o equivalente a R$ 1,1 bilhão segue bloqueado em bancos de Suíça, Luxemburgo e Mônaco, à espera de decisão judicial.

Como Barusco e Costa fizeram delação, o dinheiro voltou mais rapidamente. No caso do exdiretor de Serviços da Petrobras Renato Duque, que não fez acordo, foram bloqueados o equivalente a R$ 90 milhões. Desse valor, voltou ao Brasil apenas a metade. O restante permanece bloqueado lá fora, à espera de novas investigações e decisões judiciais.

Os números podem aumentar. Pelo menos dez réus envolvidos no esquema, além de construtoras, ainda negociam algum tipo de acordo com o Ministério Público Federal (MPF). Além disso, pelo menos 30 empresas flagradas no esquema de corrupção da Petrobras negociam com a Controladoria Geral da União (CGU) e o MPF um acordo de leniência — negociação que uma empresa faz com órgãos de controle admitindo práticas ilícitas em troca de continuar prestando serviços ao poder público. O acordo envolve o compromisso de adotar sistema de compliance e pagar indenizações pelos danos causados.

Estimativas da Lava-Jato apontam que o rombo nos cofres públicos pode ultrapassar os R$ 15 bilhões. Mais de 700 casos seguem em investigação, com procedimentos instaurados. Metade das 16 empreiteiras acusadas de participar do cartel na Petrobras também segue na condição de investigada, sem denúncia formalizada à Justiça.

Além da Petrobras, a Lava-Jato flagrou, por exemplo, pagamento de propina em contratos de publicidade da Caixa Econômica Federal e do Ministério da Saúde, e em contratos da Eletronuclear para a construção de Angra 3. Também foi identificada propina paga num acordo firmado pelo Ministério do Planejamento, que envolveu a cessão de uso do banco de dados cadastrais de mais de 7,5 milhões de servidores federais.

UM EM CADA QUATRO RÉUS VIRA DELATOR

Em um ano e sete meses de investigação, um em cada quatro réus virou delator na Lava-Jato. No total, 120 pessoas foram denunciadas e 41, condenadas. Demonizado por alguns juristas, o instrumento da delação premiada instiga o debate entre defensores de réus da operação. Técio Lins e Silva, advogado da Odebrecht, afirma que a prisão preventiva se tornou uma espécie de tortura, um “pau de arara pós-moderno” para convencer investigados a colaborar com as investigações.

— O acusado não pode abrir mão do seu direito de mentir. Isso não é uma conquista da legislação brasileira. Isso é uma conquista da sociedade ocidental, fruto da Revolução Francesa — afirma Lins e Silva. — As bases legais violam causa pétreas da Constituição. O acusado não pode abrir mão do direito de defesa. O acusado não pode ser obrigado, para ter um benefício, a abrir mão do direito ao silêncio.

O criminalista Fábio Tofic Simantob diz que há uma “banalização do instituto da delação”:

— É quase como pegar empréstimo a juros altos. As vantagens imediatas parecem tão grandes que você não sabe exatamente com o que está se comprometendo no futuro.

O questionamento às delações virou moeda política. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), denunciado na Lava-Jato, chegou a afirmar que o vazamento de informações seria manobra do governo para desestabilizálo. No último dia 23, em Salvador, o ex-presidente Lula disse que o Brasil vive “quase um Estado de exceção” com as delações.

Mesmo os críticos da delação, no entanto, dizem que ela veio para ficar. O criminalista Alberto Toron, primeiro a derrubar no Supremo Tribunal Federal a prisão preventiva de um empreiteiro (Ricardo Pessoa, da UTC), ressaltou que os acordos não representam a impunidade dos delatores. Lembrou que a maioria deles cumpre regime restritivo de liberdade, com tornozeleira eletrônica, e pagou altas multas.

Toron compara as críticas às delações da Lava-Jato com o descontentamento gerado na Colômbia pelo acordo feito entre autoridades e as Forças Armadas Revolucionárias (Farcs):

— A Lava-Jato é um pouco assim. Em troca de melhorias na administração pública, você terá um novo patamar de punição que não é na cadeia. A gente vai ter que conviver com isso daqui para frente.

 

Colaborações agora tendem a abordar assuntos específicos do esquema

 

O último acordo de colaboração homologado pela Justiça Federal na semana passada, do operador João Antônio Bernardis, pode marcar uma nova fase das delações na Lava-Jato: a de pequenos acordos sobre assuntos específicos. Bernardis revelou apenas como o ex-diretor de Serviços da Petrobras Renato Duque recebeu propina de duas empresas estrangeiras.

AILTON DE FREITAS/15-09-2015Empreiteiro. Ricardo Pessoa, da UTC, na CPI da Petrobras

A avaliação de investigadores da Lava-Jato é que dificilmente haverá um novo delator que revele uma quantidade grande de fatos, como o doleiro Alberto Youssef, o ex-gerente de Serviços Pedro Barusco ou o empreiteiro Ricardo Pessoa, da UTC. Esta é também a avaliação de vários dos advogados envolvidos em negociações, como Marlus Arns, responsável pela delação do ex-vice-presidente da Camargo Corrêa Eduardo Leite.

— O que estamos vendo e veremos a partir de agora são pequenos acordos, relativos a temas específicos da investigação — diz Arns.

A quantidade de provas e documentos acumulados pela força-tarefa da Lava-Jato dificulta o aparecimento de um novo fato completamente inédito à investigação. O próprio Duque, delatado por Bernardis, tentou por quase três meses um acordo, sem sucesso.

O criminalista Técio Lins e Silva, que defende a Odebrecht, afirma que a quantidade de acordos assinados na Lava-Jato é uma “aberração”.

— É um descompasso completo. Estamos vivendo uma arbitrariedade. O MPF assinou delação com qualquer um para tentar provar acusações irreais — ataca.

Arns, contudo, defende que não há um excesso de delação:

— Há, sim, um grande número de colaboradores, porque a investigação envolve um grande número de temas. Mas não há sobreposição de assuntos — afirma.

TABELA COM 750 OBRAS IMPRESSIONOU MORO

Apesar do grande número de delatores, a Lava-Jato avançou pouco até agora sobre o funcionamento da corrupção em outros órgãos do governo. Em outubro de 2014, Paulo Roberto Costa afirmou à Justiça que o esquema na Petrobras, de loteamento de cargos por partidos políticos, ocorria também em outras áreas do governo. Em dezembro passado, Moro ressaltou ser perturbadora uma tabela apreendida com Youssef, onde apareciam 750 obras de vários órgãos públicos. O documento o levou a falar em indícios de que o esquema de fraudes vai “muito além da Petrobras”.

Por enquanto, só há confirmações de investigações abertas sobre as obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e o caso Angra III. O entendimento do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, tem sido o de desmembrar investigações não relacionadas à Petrobras, retirando do juiz Moro a competência de julgamento.