Bibliotecas com passado trazem mais cultura para o tempo presente

 

SIMONE CANDIDA

O globo, n. 30036, 01//11/2015. Rio, p. 10-11

 

Ler um livro de Carlos Drummond de Andrade com dedicatória do autor está agora ao alcance de qualquer leitor. Assim como também é possível consultar, ainda que usando luvas especiais, uma edição de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, impressa no século XVIII. Basta ir à estante certa. No Rio, algumas bibliotecas públicas guardam em suas prateleiras coleções que pertenceram a artistas, escritores, políticos e intelectuais e que, pelo simbolismo do acervo, são verdadeiras preciosidades. Na Zona Sul, dois endereços têm coleções privadas históricas que podem ser consultadas: no Instituto Moreira Salles, na Gávea, por exemplo, encontram-se cerca de 800 livros que foram de Clarice Lispector. Na Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, há coleções de mais de 130 escritores, que começaram a chegar ao casarão da Rua São Clemente a partir da década de 70, entre eles os livros de cabeceira de Vinicius de Moraes e de Manuel Bandeira.

Consulta. Na Casa de Rui Barbosa, livros de cabeceira de Vinicius de Moraes

Uma das mais ricas bibliotecas com passado fica no segundo andar da Procuradoria Geral do Estado (PGE), no Centro, montada com livros,

documentos, móveis e objetos de decoração da crítica literária Lucia Miguel Pereira e do historiador Octavio Tarquinio de Sousa, tudo doado pelo neto do casal. Para especialistas, são livros que ajudam a contar um pedaço da história do Rio, do início do século XX.

LIBERADOS APÓS MEIO SÉCULO

Depois que os avós morreram num acidente de avião, em 1959, o artista plástico Antônio Gabriel de Paula Fonseca Jr. herdou a missão de cuidar com afinco de cerca de oito mil livros da magnífica biblioteca do casal de intelectuais. Por mais de meio século, os títulos — de romances a publicações científicas — ocuparam as mesmas prateleiras, na mesma sala, do prédio situado no Parque Guinle. Há cerca de três anos, Antônio Gabriel decidiu que era a hora de abrir as portas do escritório.

Como não teria condições de receber ele próprio o público para consultas, optou por doar o acervo a uma instituição pública. Para se desapegar dos livros, no entanto, fez uma exigência: o órgão que aceitasse o material deveria construir uma réplica do antigo escritório em que os avós recebiam artistas, escritores e intelectuais para manter tudo junto. A sala, feita nos mesmos moldes da antiga biblioteca, foi inaugurada em 2011. Lá estão alguns móveis, objetos pessoais, quadros e fotos do casal. Até mesmo a cor do chão — com um carpete vermelho — é idêntica à original.

 

Livros são doados apesar de proposta para vendê-los

 

Antes de entregar os livros dos avós para a Procuradoria Geral do Estado (PGE), Antônio Gabriel de Paula Fonseca Jr. procurou universidades e a Casa de Rui Barbosa para oferecer o material que pertencera aos intelectuais Lucia Miguel Pereira e Octavio Tarquinio de Sousa.

— Quando meu avós morreram, mesmo com dificuldade, eu consegui manter o acervo íntegro. Mas comecei a me preocupar com o futuro e seria um crime me desfazer dele, ver tudo num sebo. Recebi muitas propostas de compra, mas decidi doar. Queria uma instituição que pudesse guardar o material e preservá-lo — explica Antônio Gabriel.

Além da exigência de que todos os livros deveriam ficar num cenário semelhante ao da antiga casa — alguns móveis e objetos de decoração são originais —, o neto também quis que a biblioteca recebesse o nome dos avós. Quem visita o espaço pode consultar títulos que Octavio e Lucia colecionaram juntos, desde a década de 1930. Há livros de história, sociologia, poesia e romance, alguns usados em suas pesquisas. A seção dedicada à história do Brasil é a maior, e considerada a mais relevante. Faz parte dela uma coleção completa dos “Annaes do Senado do Império”. As consultas ao acervo são gratuitas.

LIVROS COM DEDICATÓRIAS

Na biblioteca da PGE, o leitor poderá ficar surpreso ao encontrar em vários livros dedicatórias para o casal. No exemplar de “Reinações de Narizinho”, o próprio Monteiro Lobato escreveu “O Brasil é um vasto hospital com um lindo jardim na frente. Nesse jardim, uma flor de inteligência esplende: Lucia Miguel Pereira (...)”. A biblioteca permite uma busca por títulos no site www.octavioelucia.com.

— Eles tinham um círculo de amizades que incluía escritores e intelectuais. Este amigos não só frequentavam a biblioteca, como os presenteavam com muitos dos livros que estão aqui — conta Thiago Cirne, um dos responsáveis pelo acervo do casal, acrescentando que, após as obras de restauração do Convento do Carmo, a biblioteca será transferida para o prédio histórico.

Um dos grandes desafios das instituições que guardam esse tipo de material é preservá-lo e, ao mesmo tempo, permitir que o leitor possar conhecê-lo. No Instituto Moreira Salles (IMS), o acervo tem 50 mil livros e cerca de 100 mil itens — como documentos, fotos, recortes e cartas — que pertenceram a 25 autores. São nomes como Clarice Lispector, Ana Cristina Cesar, Rachel de Queiroz, Erico Verissimo, Lygia Fagundes Telles e Paulo Mendes Campos.

 

Acervo tem originais de Clarice Lispector datilografados

 

Do baú de Carlos Drummond de Andrade, a biblioteca do Instituto Moreira Salles (IMS) guarda um raro exemplar de “Estrela da manhã", de Manuel Bandeira, de 1936. Segundo Katya Moraes, bibliotecária do acervo de literatura da instituição, o livro é considerado especial, já que foram impressas apenas 57 unidades, numeradas e assinadas pelo autor. O que pertenceu a Drummond é o de número 27.

— De Clarice Lispector, temos os originais datilografados de “A hora da Estrela" e “Água viva". Do Paulo Mendes Campos são 54 cadernos. Ele tinha o hábito de fazer ilustrações, anotações, esboços, listas, pensamentos e frases — conta Katya, acrescentando: — Não temos só acervo de escritores. Temos livros, arquivos, fotos e programas de teatro do ator Paulo Autran e do crítico de teatro Décio de Almeida Prado, por exemplo.

As consultas ao acervo do instituto podem ser feitas no site www.ims.com.br, ou diretamente na página literatura.ims.com.br. Outras informações pelo telefone 3284-7400.

Na Casa de Rui Barbosa, o acervo de obras que pertenceram a intelectuais e artistas começou a ser formado na década de 1970 e, atualmente, compõe a Biblioteca São Clemente. Entre os mais de cem escritores, estão Andrade Muricy, Clarice Lispector, Evanildo Bechara, Glória Pondé, Manuel Bandeira, Plínio Doyle, Pedro Nava, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Ribeiro Couto, Teófilo Andrade e Vinicius de Moraes.

CONSULTAS SÃO AGENDADAS

São mais de 60 mil itens, alguns com dedicatórias, anotações pessoais e folhas de comentários, material cujas capas estão em processo de digitalização (acervos.casaruibarbosa.gov.br). As consultas podem ser agendadas por e-mail (consulta.acervo@rb.gov.br) ou pelo telefone 3289-4655.

Nas prateleiras, a instituição preserva a Coleção Vinicius de Moraes, formada por 63 livros que pertenceram ao Poetinha.

— Só de Plínio Doyle temos mais de 16 mil livros. Tudo começou na década de 1970, quando Drummond lançou o apelo para que escritores doassem documentos, fotos e outras peças para a criação de um museu de literatura. Com o passar dos anos, começaram a chegar também livros e bibliotecas inteiras — comenta a chefe da biblioteca, Dilza Bastos, acrescentando que hoje a instituição aguarda as obras de ampliação que irão permitir a expansão do acervo.

A Casa de Rui Barbosa, a PGE e o IMS não fazem empréstimos, mas permitem consulta e pesquisa. É necessário agendar a visita.