Cidades debaixo d’água

 

RENATO GRANDELLE

O globo, n. 30044, 09//11/2015. Sociedade, p. 24

 

O aumento do nível do mar pode desalojar até 760 milhões de pessoas — o equivalente à população da Europa — ainda neste século. Isso ocorrerá caso a temperatura global aumente 4 graus Celsius — valor calculado por diversos estudos científicos, que será atingido se não forem tomadas providências para reduzir as emissões de gases-estufa. A estimativa é de um relatório divulgado ontem pela ONG americana Climate Central. E o Brasil estará entre os países mais afetados pelo avanço das águas. Em toda a zona costeira, 16 milhões de pessoas perderiam suas casas antes do ano 2100.

ARQUIVO/RODRIGO DE MELLOXangai em perigo. Com alta no nível do mar, 18 milhões de habitantes podem ter de abandonar cidade até 2100

Pelo levantamento, o Rio de Janeiro estará entre as vinte metrópoles mais afetadas do planeta. Com a elevação dos termômetros, o aumento projetado de quase nove metros do nível do mar neste século desalojaria 24% dos cariocas (cerca de 1,5 milhão de pessoas). Os efeitos mais catastróficos, porém, terão a Ásia como palco. De acordo com o estudo, 76% dos moradores de Xangai, na China, podem ser obrigados a deixar suas casas. Seriam 18 milhões de pessoas desabrigadas.

Há, no entanto, como evitar índices tão caóticos. Se a temperatura global avançar apenas 2 graus Celsius, o objetivo perseguido nas negociações internacionais sobre o clima, o aumento do nível do mar seria contido a 4,7 metros. Neste caso, 280 milhões de pessoas — entre elas, 8,9 milhões de brasileiros — precisariam abandonar regiões litorâneas. No Rio, 13% da população (832 mil pessoas) deixariam as novas áreas banhadas.

Embora os índices permaneçam altos, já constituem uma diferença sensível em relação ao cenário mais pessimista. Por isso, vale a pena a corrida para conter os termômetros.

— As projeções mais negativas sugerem um futuro instável, de migrações constantes — alerta Benjamin Strauss, vice-presidente para Aumento do Nível do Mar e Impactos Climáticos da Climate Central e coautor do estudo. — A boa notícia é que a elevação dos mares não acontece do dia para a noite. Não é tarde para evitarmos as piores projeções. Temos muitas escolhas à frente. Mas o corte das emissões de carbono deve ser iniciado imediatamente. Do contrário, a cada ano enfrentaremos novas dificuldades. DERRETIMENTO DE GELEIRAS A equipe de Strauss debruçou-se sobre uma série de fatores que contribuem para inflar o nível do mar: a elevação da temperatura dos oceanos, o derretimento de geleiras e a deterioração da camada de gelo no Ártico e na Groenlândia.

— Os riscos globais das mudanças climáticas são cristalinos como o aumento do nível do mar. A Conferência do Clima de Paris, que começará no fim do mês, pode apontar se perderemos inúmeras grandes cidades costeiras e monumentos ou se conseguiremos preservar nossa herança.

Ainda assim, o tamanho do estrago inevitável detectado pelo relatório — aquele que ocorrerá mesmo se houver um acordo contra o aquecimento global — espanta os cientistas.

Camilla Born, pesquisadora sênior em Diplomacia do Clima no think tank (entidade que busca produzir conhecimento sobre temas estratégicos) ambiental E3G, diz que, mesmo com a mobilização sem precedentes contra as mudanças climáticas, de fato “algum aquecimento será inevitável”.

— Megatempestades como o furacão Sandy, o tufão Haiyan e as secas extremas na África Subsaariana são sinais de nossa exposição — assinala. — Novos aumentos da temperatura global levarão ao aumento do nível do mar e à ameaça às populações costeiras. Não estamos conseguindo nos adaptar a esta situação tão instável.

Professor do Programa de Planejamento Energético da Coppe-UFRJ, Roberto Schaeffer assinala que o estudo americano traz a relação mais detalhada já feita das regiões costeiras do planeta vulneráveis à elevação do nível dos oceanos.

— Em alguns locais, como Nova York, os pesquisadores mostram o que ocorrerá em cada quarteirão — elogia. — Talvez o aumento do nível do mar ainda não tenha gerado uma grande preocupação na ciência, a ponto de vermos nossa fragilidade à elevação do mar. Embora boa parte da população mundial more em zonas costeiras, até agora não tínhamos um mapeamento detalhado.

Na semana passada, o instituto americano Pew Research Center divulgou um levantamento realizado com 45 mil pessoas de 40 países. Os entrevistados revelaram quais fenômenos climáticos consideravam mais preocupantes. Em nenhuma nação o aumento do nível do mar foi registrado como o maior temor. Trata-se do principal motivo de susto para apenas 6% dos participantes da enquete — índice muito inferior aos que elegeram a seca (44%), tempestades e enchentes (25%) ou ondas de calor (14%).

Ben Marzeoin, professor do Instituto de Geografia da Universidade de Bremen, na Alemanha, concorda que a população mundial não percebe o trato ao oceano como uma de suas urgências. E esta atitude, segundo ele, vai custar caro.

— É nossa capacidade de cooperar e planejar com antecedência que permitiu o progresso da Humanidade nos últimos séculos. O estudo da Climate Central mostra que decidiremos o tamanho do fardo que vamos deixar para as próximas gerações. PREFEITURAS, COMO A DO RIO, TOMAM A FRENTE O avanço dos oceanos gera uma crescente inquietação entre os governos nacionais. No entanto, em diversos casos, a adaptação às mudanças climáticas nas metrópoles costeiras tem sido capitaneada por prefeitos.

— As cidades já estão assumindo as rédeas — repara Strauss. — Para se protegerem no futuro, as metrópoles litorâneas devem tomar a liderança no desenvolvimento de projetos que lidem com o aumento do nível do mar.

Oitenta metrópoles, onde vivem cerca de 9% da população mundial, compõem o C40, o Grupo de Grandes Cidades para a Liderança Climática. O prefeito Eduardo Paes é o atual presidente da organização. O Rio tenta dar exemplo em como evitar um banho do oceano.

Assessor especial de Paes, Rodrigo Rosa revela que a cidade precisa identificar seus pontos de maior vulnerabilidade, diante da incerteza de como o aquecimento global vai intervir no aumento do nível do mar.

— Instalamos dois piscinões na Praça da Bandeira e fizemos sistemas de drenagem na Bacia de Jacarepaguá e na Zona Portuária — enumera. — O aumento da temperatura de 4 graus Celsius, que é analisado pelos cientistas, poderá causar um impacto significativo na dinâmica da cidade. Teremos chuvas torrenciais frequentes, possibilidade de deslizamento de encostas, ilhas de calor.

Rodrigo considera que, com a urbanização acelerada em diversas regiões do planeta, é natural que as cidades estejam à frente dos planos para contenção do avanço dos oceanos:

— Os prefeitos estão mais próximos do problema e entendem melhor os riscos e as demandas da população.