Pedro S. Malan
O Estado de São Paulo, n. 44525, 13/09/2015. Opinião, p. A2
"Lógico que houve erro. Se não houvesse erro não teríamos chegado aonde nós chegamos, e Dilma reconhece isto. Acho que houve alguns equívocos na questão econômica. Acho que o PT cometeu desvios porque começou a fazer política igual aos outros partidos e o PT era para ser diferente de verdade.” Assim falou Lula em Montes Claros duas semanas atrás, onde deu seu recado: “Se for necessário, vou para a disputa”. A julgar pelas declarações em Assunção e Buenos Aires nestes últimos dias, Lula está achando que vai ser necessário, com os olhos postos na transição do PT até outubro de 2016 e na sua própria travessia até outubro de 2018 na busca do que denominam “o nosso projeto”, permanecer no poder.
A presidente Dilma é mais parcimoniosa: “Se cometemos erros, e isso é possível, vamos superá-los”. A marquetagem política deixou clara a linha a ser seguida desde o programa oficial do partido no início de agosto, ao insistir no bordão do “durante os últimos seis anos evitamos que a crise afetasse o Brasil, o emprego e a renda do trabalhador”. Na entrevista ao Valor desta sexta a presidente foi um pouco além no reconhecimento da enrascada atual, admitindo que “aplicou, por um período de tempo excessivo, uma política anticíclica agressiva”, mas reiterou que só em novembro de 2014 é que “ficou muito claro o fim do ciclo das commodities”.
Seu ministro mais chegado (Mercadante) já havia dito à Folha de S.Paulo, no dia 6: “Estávamos em intensa campanha, debatendo, viajando, e quando chegou o fim da campanha o mundo era outro. Isso impactou muito as finanças públicas. Fomos além do que podíamos na política anticíclica, na desoneração de impostos, no esforço por manter os investimentos, de manter os gastos”.
Na verdade, como sabem os razoavelmente bem informados, o gasto público não foi “mantido”, mas cresceu, por anos, muito acima do crescimento da economia: o investimento está em queda desde o terceiro trimestre de 2013; a produção industrial, em declínio há oito trimestres; a inflação esteve roçando o teto da meta em praticamente todos os últimos anos. Decisões desastrosas foram tomadas sobre a Petrobrás e o setor elétrico. O Brasil entrou em recessão no segundo trimestre de 2014.
Inúmeros analistas respeitados chamaram – por anos – a atenção, com argumentos e evidências, para as nuvens espessas que se acumulavam no horizonte. Mas o emprego, a renda e a massa salarial real pareciam bem até o segundo trimestre de 2014 e era isto o que importava ao governo e a seus marqueteiros: chegar até as eleições de outubro de 2014 – e ganhar. Até lá o governo vendeu a continuidade da política que vinha implementando havia anos – e esta, agora se vê mais claramente, fracassou. E muito pior: a conta chegou – e pesada – para todos.
Mas o que importa a esta altura, em que é preciso olhar à frente para esta difícil, tortuosa e torturante “transição” (para 2016) ou “travessia” (para 2018) não é mais insistir em que a presidente e seu governo façam adicionais confissões explícitas de erros e “mea culpa”. Isso não vai ocorrer de forma clara da parte de Dilma e do seu núcleo duro. Já Lula tem outras razões, e muito suas, como criador, para procurar dissociar-se um pouco do que considera erros de sua sucessora – ou criatura, apesar de seu partido estar no poder há mais de 12 anos e 8 meses.
Nem são mais necessárias confissões, porque a opinião pública minimamente informada já sabe – e/ou sente no seu dia a dia – que houve uma ruptura entre a visão e a versão que vinha sendo propagada pelo governo até o final de outubro de 2014 e a visão que vem, aos poucos, sendo explicitada meio que relutantemente desde novembro/dezembro do ano passado – mas de maneira não muito convincente.
Por que digo isso? Porque, apesar dos reconhecidos esforços dos ministros da área econômica, me parece faltar liderança, e convicção com coordenação, onde elas mais importam: na ação efetiva do governo em seu conjunto. Não se trata agora de reconhecer erros do passado, mas de mostrar que há um claro entendimento sobre o que fazer, e que esse entendimento se expresse em ações e propostas efetivas (de curto, de médio e de longo prazos). Não há uma saída que, em poucos meses, assegure uma firme ancoragem de expectativas sobre a recuperação do crescimento, do investimento, da renda e do emprego, como procura dar a entender a área política do governo.
Mas os ministros da área econômica têm toda a razão ao enfatizar a importância crucial de que o drama fiscal brasileiro seja mais bem entendido pela classe política e pela população em geral. Essa necessidade (e dificuldade) não é só nossa.
“Durante anos, a opinião pública demonstrou profunda indiferença em relação a todos os aspectos das finanças públicas, inclusive endividamento, compensações (salariais) e pensões. A única exceção são os impostos, com os quais todos se preocupam. Talvez a indiferença seja forte demais.”
O trecho acima é de um artigo traduzido do inglês e publicado no Globo de 30/7/2010. O artigo refere-se aos descalabros fiscais que teriam levado à insolvência pequenos governos locais da Califórnia (EUA). Como diria o grande Ancelmo, “deve ser duro viver num lugar assim”. Mas também entre nós talvez a indiferença seja forte demais quando se consideram não as legítimas preocupações individuais, mas os números agregados de compensações, pensões, dívidas e impostos. E essa indiferença terá de diminuir gradualmente, dadas a “transição” e/ou a “travessia” que vem por aí.
Escrevi parte deste artigo ouvindo o Va, Pensiero, belíssimo coro da ópera Nabucco, de Verdi, e me lembrando da histórica apresentação da Orquestra do Teatro da Ópera de Roma em que a audiência insistiu num bis do coro, com o qual o maestro (Muti) acabou concordando. Emocionante ver o teatro repleto cantando com o coro e subindo o tom ao chegar ao “oh mia patria, sì bella e perduta!”.
*Pedro S. Malan é economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC/ e-mail:malan@estadao.com.br