Emergentes racham e EUA pressionam contra Doha

Assis Moreira 

15/12/2015

Os emergentes chegam rachados e sob pressão na conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que começa hoje em Nairóbi (Quênia), situação pouco confortável em meio às incertezas na área comercial.

Brasil e Índia, antes fortes aliados, ficaram em trincheiras opostas na área agrícola, em encontro bilateral na capital queniana.

O Brasil ainda tenta arrancar alguma medida para promover exportações agrícolas (eliminação de subsídios, controle de garantia de crédito, disciplina na ajuda alimentar e dos monopólios agrícolas estatais). Já a Índia só pensa em obter proteção contra importações, com potencial para afetar o ritmo de expansão de exportações agrícolas brasileiras.

O G-20 agrícola, que foi liderado pelo Brasil e já estava em hibernação, voltou a se reunir, mas foi só. Os ministros sequer tentaram fazer um comunicado diante das enormes diferenças entre exportadores e importadores. "Foi melhor nem tentar, para não causar mais estresse", afirmou uma fonte.

Ao mesmo tempo, China, Brasil e Índia voltaram a entrar na mira dos EUA para o que pode ocorrer no rastro da reunião de Nairóbi.

O principal negociador comercial americano, Michael Froman, abriu fogo antes de chegar a Nairóbi, assinando um artigo de opinião no jornal "Financial Times" em que alerta os parceiros que "é hora de sermos honestos, estamos no fim da linha sobre Doha". A mensagem não era nova, até porque o embaixador americano junto à OMC não cessou de repetir isso ao longo dos últimos meses, como o Valorreportou várias vezes.

A surpresa foi mais por Wa-shington publicar um artigo na véspera da reunião, visivelmente procurando implodi-la de vez. Os americanos deixaram claro que não dá mais para continuar com a Rodada Doha de liberalização de comércio no modelo de negociação atual, que não entregou os resultados esperados. Os EUA acenam continuar a negociar os mesmos temas, e incluir outros, mas sob outro modelo de negociação.

Se nada mudar, o recado dos americanos foi claro: intensificarão soluções fora da OMC, "levantando questões sobre sua relevância em negociações comerciais".

Na prática, para os EUA, discutir em novas bases significa que China, Índia e Brasil, principalmente, seriam levados a fazer mais concessões de abertura de seus mercados do que o grupo dos países em desenvolvimento em geral. A China tampouco poderia tentar se esquivar com o argumento de que já pagou caro com a abertura de seu mercado quando entrou na OMC.

Para aumentar as suspeitas de certos negociadores de emergentes, de que os EUA apostam na África para rachar mais o mundo em desenvolvimento, o jornal "Business Day", de Nairóbi, que não é especializado em negociação multilateral, apareceu ontem com artigo sugerindo o que a África deveria visar nas negociações da OMC nesta semana: pressionar pela reclassificação de China, Índia e Brasil para fora do grupo dos países em desenvolvimento. E isso deveria ocorrer levando em conta o percentual deles no comércio mundial, e não a renda per capita.

Além dessa "sugestão" não interessar aos emergentes, foi ainda rechaçada por especialistas como o professor Timothy Wise, do Global Development and Environment Institute, da Universidade Tufts University (EUA). Ele lembrou que somente a Índia tem mais pessoas na pobreza do que todos os (54) países mais pobres do mundo, e isso não pode ser ignorado.

A opção multilateral se apresenta pouco confortável para o Brasil. E as perspectivas em Nairóbi continuam sombrias. Ainda assim a delegação brasileira, chefiada pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, trouxe especialistas em concorrência nas exportações e ao longo dia sugeriu várias alternativas técnicas para tentar superar as dificuldades. O clima, porém, não está para acordo.

A delegação brasileira deixou claro, sobretudo aos emergentes protecionistas, que não aceitaria a criação de uma salvaguarda para aumentar barreiras nas importações agrícolas, como querem a Índia e o resto do G-33, grupo que conta também com a China.

Na verdade, até o que é dado como um sucesso em Nairóbi passa por dificuldades. Trata-se do Acordo de Tecnologia de Informação (conhecido pela sigla ITA), com participação de 50 membros. É o primeiro compromisso de corte de alíquotas em 17 anos na entidade.

Neste ano, foi anunciada a lista dos produtos para liberalização. O acordo deveria ser fechado de vez em Nairóbi, com a conclusão do cronograma dos cortes tarifários. Ocorre que a China jogou quase todos as linhas tarifárias que aceita liberalizar só para o último prazo, após sete anos. Os parceiros estão irritados e pressionam Pequim, que, no entanto, não demonstra interesse em mudar a sua posição.

"A coisa não vai bem, não está claro se o acordo será confirmado aqui", disse uma fonte tarde da noite na capital queniana.

Esse seria um golpe mais duro para a OMC, no cenário atual. O comércio envolvido no ITA é estimado em US$ 1,3 trilhão por ano. Equivale a todo o comércio mundial do setor automotivo. A expectativa entre certos negociadores é que o ITA possa estimular o PIB mundial com algo próximo de US$ 190 bilhões por ano, por meio de baixa de tarifa, aumento de consumo, correção de ineficiências etc. No total, seriam liberalizados 90% dos produtos de tecnologia da informação.

Também o Acordo de Facilitação de Comércio não começará a vigorar a partir de Nairóbi, porque até agora apenas 57 países o ratificaram, a metade do exigido.

Valor econômico, v. 16 , n. 3904, 15/12/2015. Internacional, p. A9