Fiocruz aposta em informação contra vírus zika e pânico

Renata Batista 

15/12/2015

De doença sem notificação obrigatória, com sintomas insignificantes frente aos da dengue, a infecção pelo vírus zika, com suas manchas avermelhadas, febre baixa e dores nas articulações, se converteu, em semanas, na maior preocupação do meio científico no Brasil. Zika e dengue - e também a chikungunya - são causadas por agentes transmitidos pelo mosquito Aedes Aegypti.

Há um claro esforço para manter a tranquilidade da população, mesmo depois que foi confirmada a ligação do vírus com o número crescente de casos de microcefalia e também com a Síndrome de Guillain-Barré. Poucos especialistas conseguem negar, porém, que as epidemias de zika e microcefalia colocam em risco uma geração de brasileiros, sem que haja tratamento e até o diagnóstico ainda seja limitado.

Para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a epidemia de zika, que em pouco mais de seis meses se alastrou por 20 Estados do Brasil, exige entender a ação do vírus no sistema nervoso, desenvolver protocolos de diagnósticos e tratamento e novas formas de combater o mosquito transmissor, considerado uma praga urbana. Em conversa com o Valor, o vice-presidente de pesquisa e laboratórios de referência da Fiocruz, Rodrigo Stabeli, destaca o esforço da entidade para desarmar boatos sobre a doença, quase desconhecida, nas redes sociais.

Segundo ele, há uma articulação internacional para desenvolver mecanismos de controle das epidemias, mas o Brasil tem condições, nesse momento, de realizar sozinho as ações necessárias. No longo prazo, porém, o sistema de saúde pública precisará estar preparado para lidar com os bebês nascidos na epidemia.

Diferentemente da Colômbia e da Polinésia Francesa, no Brasil o aborto de bebês com microcefalia é proibido, o que pode explicar o fato de só aqui a ligação entre as duas doenças ter sido identificada. "Nós, que estamos lidando no dia a dia, ficamos assustados, desanimados", disse.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Por que nenhum outro país afetado pelo vírus zika está vivendo a mesma situação do Brasil?

Rodrigo Stabeli: O último boletim epidemiológico feito pela Opas [Organização Pan-americana de Saúde] mostra a entrada do vírus zika na Colômbia, na Venezuela, no Paraguai. Na Colômbia, está na quase totalidade dos Estados. O Brasil foi o primeiro país a correlacionar os eventos de microcefalia com infecção pelo zika. O laboratório de referência da Fiocruz achou o vírus no líquido amniótico de gestante cujo bebê tem microcefalia. Foi uma forte evidência científica. Antes do Brasil, não havia relato de microcefalia ligado ao vírus. Após a notificação do Brasil, a Polinésia Francesa, revendo seus dados, também observou que lá também houve aumento de má-formação congênita após a epidemia de zika.

Valor: Nos países vizinhos ao Brasil também há relatos de casos de microcefalia ligados à epidemia pelo vírus zika?

Stabeli: Nos vizinhos, o surto é mais recente e não observaram microcefalia ainda. Conversei com o vice-ministro de Saúde da Colômbia. Lá, a legislação, como na Polinésia Francesa, autoriza o aborto para fetos que tenham má formação congênita, em casos em que a criança não pode não ter qualidade de vida ao nascer. Pode ser que esses países não tenham observado a microcefalia porque foi permitido o aborto das crianças.

Valor: O entendimento é que temos uma epidemia do zika e também de microcefalia?

Stabeli: Sim. Esse é o entendimento do Ministério. Temos um aumento de casos significativos de zika e de microcefalia.

Valor: E qual o prognóstico para o verão?

Stabeli: Esperamos aumento de casos no verão, como acontece com a dengue. Em alguns Estados, como no Rio de Janeiro, já existe um número maior de casos de dengue do que no ano passado. Como ainda estamos no pré-verão, ainda é possível fazer a prevenção, combater o mosquito.

Valor: O que é verdade e o que é mentira sobre a epidemia?

Stabeli: Foi espalhado um áudio pelo Whatsapp dizendo que o vírus dá problema em crianças menores de sete anos e idosos. Isso é boato. O vírus zika, como qualquer outra doença infecciosa, pode atingir mais algumas parcelas da população, mas não existe nada que indique que ataque mais gravemente uma criança de até sete anos ou um idoso. Outro boato grave é que o que causa da microcefalia é a vacina de rubéola. Não existe problema com a vacina de rubéola. O Brasil tem um dos melhores programas de imunização, tem umas das melhores agências de vigilância sanitária. A Anvisa [Agência de Vigilância Sanitária] jamais permitiria a distribuição de vacinas com problemas.

"Antes de acreditar em vídeos, procure informações nos veículos oficiais, no Ministério da Saúde e na Fiocruz"

Valor: O vírus causa a Síndrome de Guillain-Barré?

Stabeli: A associação com a síndrome já foi reconhecida pelo Ministério da Saúde, mas não é um evento que atinge preferencialmente crianças de menos de sete anos nem idosos. Como temos diferenças genéticas na população, algumas pessoas não vão nem perceber que foram infectadas, será assintomático. Outra parcela vai desenvolver da forma clássica, e outros de forma mais grave, que pode desenvolver características parecidas com a síndrome, mas com sintomas reversíveis, porque não é uma doença autoimune, mas infecciosa.

Valor: A preocupação do setor de saúde é não gerar pânico?

Stabeli: Exato. Antes de acreditar em vídeo que viu no Whatsapp, no Facebook, procure informações nos veículos oficiais, no Ministério da Saúde e no portal da Fiocruz. Os sites estão sendo atualizados diariamente. Estamos agindo com a maior transparência possível, para manter a população bem informada.

Valor: É a primeira epidemia que a Fiocruz enfrenta na era das redes sociais?

Stabeli: Nessa magnitude, é a primeira vez que nos preocupamos em criar mecanismos de comunicação focados em redes sociais. Nunca precisamos fazer contra informação por Instagram, por Facebook.

Valor: Qual a consequência social, econômica, da epidemia de microcefalia? O Ministério da Saúde já avaliou isso?

Stabeli: Microcefalia é uma má-formação congênita irreversível, de forma que, dependendo do grau, a criança vai ter falhas no desenvolvimento motor, no desenvolvimento da linguagem ou até a morte no nascimento. É preciso que o sistema público de saúde tenha fisioterapeutas, psicólogos, fonoaudiólogos, que possam acompanhar essas crianças e estimular seu desenvolvimento neuromotor desde o seu nascimento até a sua sobrevida. É uma atividade cara, mas necessária porque estamos presenciando o nascimento de parte de uma geração brasileira com microcefalia.

Valor: É possível saber qual a incidência de microcefalia em gestantes contaminadas pelo zika?

Stabeli: Não. O que percebemos é que existe uma correlação baixa, dada a quantidade de infectados. Temos um aumento de bebês com microcefalia, mas não um aumento que está explodindo em números. É um aumento gradual.

Valor: Qual o momento mais crítico da gestação?

Stabeli: Os casos que vimos até agora na Fiocruz foram de mães infectadas no primeiro trimestre da gravidez. O vírus zika gosta de células nervosas, ele se desenvolve em células nervosas. O primeiro trimestre da gestação é o que tem maior atividade do sistema nervoso central. Então, observamos que infecções no primeiro trimestre são as que podem ocasionar mais casos de microcefalia. Mas o sistema nervoso se desenvolve ao longo da gravidez e no período pós-natal.

Valor: Há alguma intervenção médica que ajude a reduzir o risco para os bebês?

Stabeli: Não. O que temos dito para as gestantes é para que façam o pré-natal. É um vírus novo, não tem nenhum tratamento farmacológico. O que o SUS está oferecendo é que uma gestante que tenha o diagnóstico tenha acompanhamento mais próximo.

Valor: O vírus continua no corpo da pessoa?

Stabeli: Diferentemente de um vírus da hepatite, do herpes, do HIV, o Flavivirus, que é da família do zika, é um RNA. Não fica no corpo depois que passa a infecção. Os dados científicos que temos hoje indicam que, se uma mulher que planeja engravidar, pegar o zika hoje e engravidar daqui a 40 dias, não tem risco.

Valor: Essa situação, então, expõe uma questão política que é o direito da mulher ao aborto?

Stabeli: Tenho minhas opiniões pessoais em relação ao aborto, mas não emito comentário. Nas reuniões técnicas a questão do aborto não tem sido discutida. Temos discutido mesmo é se é possível usar uma plataforma preexistente para encurtar a produção de uma vacina contra o vírus, como podemos intervir para diminuir esse risco [de microcefalia].

Valor: Então, qual a estratégia para o verão?

Stabeli: No verão, combate ao mosquito, exames clínicos e a notificação obrigatória. Estamos aumentando nossa capacidade de diagnóstico para que seja mais rápido. Então, a falta de exames não está sendo um fator limitador de diagnóstico para o SUS.

"O mosquito está espalhado. Está nas Américas, na Austrália, na Ásia, em toda região tropical. Não é de fácil controle"

Valor: Por que, em mais de duas décadas, o Brasil não conseguiu se livrar do Aedes Aegypti?

Stabeli: É um mosquito muito perspicaz. Se desenvolve em pequenas quantidades de água, em águas limpas, com grau de contaminação pequena, que se esconde. Gosta de meios urbanos. Onde há processo de urbanização e clima quente, o mosquito está espalhado. Está nas Américas, na Flórida, por exemplo, na Austrália, na Ásia. Em toda região tropical, há a presença do mosquito. Não é de fácil controle.

Valor: Estão faltando recursos financeiros para combater o mosquito?

Stabeli: Houve um processo de descentralização para os Estados e municípios, para que eles pudessem tomar conta dos agentes de endemias. Na década de 80, esse trabalho era federalizado. Nesse processo, houve uma perda de força nas campanhas de prevenção. A descentralização fez com o que sistema diminuísse.

Valor: Mas o governo federal pensa em reassumir esse sistema agora que há a epidemia?

Stabeli: Não sei dizer. Foi montado uma força-tarefa com 18 ministérios. As Forças Armadas também vão atuar na prevenção. Em Pernambuco, isso já está acontecendo. Nas reuniões em que estive, não foi colocado falta de equipamentos nem falta de insumos. E o ministro tem falado que não faltarão recursos para combater o zika e a microcefalia. Do ponto de vista de diagnóstico, pesquisa, para a Fiocruz, não tem faltado recurso.

Valor: E a Fiocruz está aplicando os recursos em quê exatamente?

Stabeli: Há uma frente de desenvolvimento da estratégia da vigilância, como a doença se desenvolve, qual mecanismo de intervenção pode ter para parar a doença. E na frente de desenvolvimento tecnológico, insumos de diagnósticos molecular e sorológico, para que possamos ter o diagnóstico mais rápido da doença.

Valor: Teremos testes sorológicos para o verão?

Stabeli: Creio que não. Em 40 dias, estaremos oferecendo um kit molecular para ser difundido para os laboratórios centrais do país. Em cinco ou seis meses, podemos ter um sorológico que consiga diferenciar zika, chikungunya e dengue.

Valor: A dificuldade do teste sorológico é diferenciar os três?

Stabeli: O zika reage cruzadamente com o vírus da dengue. Então, o sorológico tem que ser mais refinado.

Valor: Mas alguns laboratórios privados estimam que terão o teste sorológico em dois meses.

Stabeli: Se algum laboratório conseguir fazer o teste em dois meses, compraremos. Mas acho muito difícil. O que existe são alguns oferecidos em caráter experimental.

Valor: O Brasil está trabalhando em conjunto com outros países? Já houve oferta de apoio?

Stabeli: A OMS já foi notificada. Se colocou à disposição para ajudar. Os Estados Unidos, a Comunidade Europeia, a rede Pasteur de pesquisa, da qual a Fiocruz faz parte. Todos estão solidários, ofereceram ajuda. É importante salientar que as tecnologias que existem nesses países são as mesmas que existem no Brasil. Estamos conversando para estabelecer o protocolo que permita entender essa doença o mais rápido possível, para oferecer uma solução à saúde do Brasil e dar qualidade de vida aos brasileiros.

Valor: Foi feito algum acordo de cooperação?

Stabeli: Nesse momento, não houve ainda nem envio de recursos nem de material para esses países, porque temos competência técnica para estabelecer o protocolo por aqui.

Valor: Não falta competência, mas falta dinheiro nesse momento...

Stabeli: Se alguém ofereceu dinheiro para o ministério, não sei. Mas não há entendimento ainda sobre a dispersão dessa doença. Então, se colocar dinheiro bilateral agora, pode acabar faltando dinheiro para outras coisas depois.

Valor econômico, v. 16 , n. 3904, 15/12/2015. Especial, p. A12