Chamado à ação

Jorge Chediek 

09/10/2015

A Década Internacional dos Afrodescendentes, estabelecida pela Assembleia Geral da ONU, teve seu lançamento no Brasil no último dia 22. O país é o segundo no mundo em população negra. São mais de 100 milhões de brasileiros negros, metade do total aproximado de pessoas que vivem nas Américas e se identificam como afrodescendentes. O Brasil desempenhou papel fundamental no processo de negociação para a criação da Década, o que também contribui para conferir ao país posição única. Trata-se, portanto, de oportunidade excepcional para se promover a inclusão política, econômica, social e cultural de negras e negros no Brasil. 

A Década estrutura-se sob o lema Pessoas afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento. É um convite a todos para que ponderem sobre as melhores estratégias de direcionamento de programas e recursos para a inclusão mais eficiente desse imenso segmento social e reflitam sobre a importância do tema para o avanço da agenda de desenvolvimento pós-2015. Já houve, no Brasil, progresso relevante nesse sentido, em consonância com a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizados em Durban, África do Sul, em 2001. No decorrer das quatro últimas décadas, o país cresceu economicamente, reduziu o analfabetismo, sua população tornou-se predominantemente urbana, e o sistema de ensino superior passou por significativa expansão. 

De forma geral, as desigualdades diminuíram, como resultado de novas políticas salariais e de transferência de renda. Os esforços do governo e da sociedade brasileira em geral contribuíram para que número considerável de pessoas saísse da situação de extrema pobreza. Como se sabe, afrodescendentes são desproporcionalmente mais atingidos pela pobreza no país. A adoção de medidas especiais, conhecidas como ações afirmativas, também tem contribuído para a reparação de desigualdades e injustiças históricas. 

No entanto, persistem no Brasil desigualdades raciais, étnicas e de gênero, as quais impedem a plena realização da democracia e o progresso do país em direção a seus objetivos de desenvolvimento. Dados oficiais informam que as mulheres negras recebem, em média, 50% da remuneração das mulheres brancas e que respondem por quase 70% das famílias com renda de até um salário mínimo. É igualmente inaceitável a situação de injustiça que assola a juventude negra. Segundo o Mapa do Encarceramento, lançado neste ano pela Secretaria Nacional de Juventude com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o homicídio é a principal causa de morte de jovens com idade entre 15 e 29 anos no Brasil, especialmente jovens negros do sexo masculino. Dados do Ministério da Saúde mostram que mais da metade dos 56.337 mortos por homicídios em 2012 no Brasil eram jovens (52,63%), dos quais 77% eram negros (pretos e pardos). Com essa população sujeita a restrições no acesso a oportunidades equitativas para a ampliação de suas potencialidades, todo o processo de desenvolvimento do país fica prejudicado. 

Percebe-se a persistência da cultura de discriminação ao examinar a estrutura política, econômica, social e cultural no Brasil, em que negros e brancos vivem países diferentes em um mesmo território. De um lado, a exclusão racial torna-se vetor permanente na trajetória de mulheres negras e de homens negros, transmutando-se a cada fase da vida e mesmo da morte por um sistema contínuo de desvantagens nem sempre evidentes e comprováveis. A despeito de pesquisas, estudos e projeções que denunciam a existência do racismo, no cotidiano são fartas as situações de conivência e tolerância às desigualdades raciais. Promover o reconhecimento - como prevê o lema da Década _ é remover os obstáculos que impedem a realização dos direitos humanos de afrodescendentes. 

A justiça, por sua vez, é um dos valores mais caros à civilização, em que direitos são assegurados por meio de leis que devem nortear o bem-viver em sociedade. A Década Internacional dos Afrodescendentes, que seguirá até 31 de dezembro de 2024, convoca todos para ação obstinada em favor do desenvolvimento social inclusivo, a fim de corrigir a engrenagem excludente baseada no racismo. Dessa forma, estará mais próxima uma sociedade mais igual, na qual os direitos humanos de afrodescendentes se cumpram efetivamente.

Correio braziliense, n. 19128 , 09/10/2015. Opinião, p. 12