O globo, n. 30083, 18/12/2015. País, p. 5

Mais de 20 anos depois, o mesmo rito

THIAGO HERDY

No impeachment de Collor, em 1992, quando o país não estava dividido, cabia ao Senado, após decisão da Câmara, determinar se o processo ia adiante.

Gravado em duas páginas do Diário Oficial da União em outubro de 1992, o despacho com o rito definido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para o impedimento do então presidente Fernando Collor parecia um registro meramente burocrático: manifestações de “caras-pintadas” pedindo a saída do político tomavam o país e o presidente já não contava com mínimo suporte do Congresso para continuar no poder. Na sessão de ontem do STF, 23 anos depois, o despacho saiu do esquecimento para ganhar peso como principal referência para definição dos passos do processo de impeachment de Dilma Rousseff, a avaliação da maioria dos ministros.

O documento de 1992 definia em detalhes o passo a passo do andamento de um processo de impeachment no Senado, depois do acolhimento de denúncia popular contra o presidente por parte da Câmara dos Deputados. Ao receber a resolução dos deputados federais autorizando o processo, caberia ao Senado formar imediatamente uma “comissão especial”, composta com observância ao princípio da proporcionalidade partidária. Esse grupo teria 48 horas para se reunir e, em até 10 dias, apresentar um parecer versando o conhecimento, ou não, da denúncia.

Pela regra definida naquele momento, o parecer deveria ser submetido ao plenário para votação nominal, em um só turno. Se rejeitado o parecer, o processo seria extinto e, os autos, arquivados. Se aprovado por maioria simples de votos, seria reputada passível de deliberação a denúncia popular. Neste caso, a presidência do Senado deveria ser transmitida imediatamente ao presidente do STF e, o denunciado, notificado em um prazo de 20 dias. A partir daí, o presidente seria afastado temporariamente do cargo por 180 dias, assumindo o vice em seu lugar.

Como a lei com regras que tratam do impeachment era de 1950 (esta ainda é a peça em vigor), em 1992 os ministros do STF tiveram que readequá-la à Constituição de 1988, que na avaliação deles inovava ao transferir para o Senado Federal “o juízo de acusação e o julgamento” do processo de responsabilização político-administrativa contra o presidente. Para resolver o impasse, “importaram” para o rito regras da mesma lei de 1950 que cabiam apenas a processos contra ministros do Supremo e ao Procurador-Geral da República (PGR).

O objetivo do presidente do STF na época, Sydney Sanches, era evitar o travamento do impeachment por causas de disputas jurídicas e o risco de nulidade do processo. Embora guarde semelhanças com os dias atuais — como a pioria dos índices de desemprego e inflação e denúncias de corrupção pairando em torno da base do governo —, o cenário da época tinha uma diferença crucial: os senadores já não acreditavam na manutenção do governo.

Prova disso é que a comissão especial do Senado criada para analisar a decisão da Câmara foi criada em um dia e, no dia seguinte, o grupo já tinha pronto seu parecer pela continuidade do processo. O documento foi votado no dia seguinte pelos senadores, em procedimento simbólico — nenhum teve que registrar o voto, apenas se manifestar no plenário, o que contrariou a própria regra definida pelo Supremo, que previa votação nominal. No dia seguinte, Collor foi intimado a se afastar do cargo.

O único a questionar a celeridade do processo foi o então senador Odacir Soares, que argumentou pela necessidade de se ampliar a discussão sobre o afastamento. A proposta foi rejeitada pelos senadores — havia o clima de que o caso era irreversível e uma maioria inquestionável pela aprovação do impeachment.

— A posição da opinião pública era muito clara, naquela época Collor estava sem apoio na Câmara e no Senado. Agora, Dilma tem parte do partido dela e de outros partidos que ainda a apoiam — analisa o ex-ministro do STF Sidney Sanches, responsável pelo estabelecimento do rito de 1992 no Supremo.

Ele lembra que, na ocasião, o ex-presidente tentou barrar judicialmente o processo contra ele, sem sucesso.

— Collor apresentou mandado de segurança pedindo ampliação de prazos da defesa, impetrou vários outros mandados. Mas todos foram indeferidos pelo Supremo — lembra ele.

— Se estivesse hoje no STF, proporia que se observasse o roteiro de 1992, que nada mais é do que a explicitação de como se deveria cumprir a lei (de 1950) e a Constituição em caso de processo de impedimento — argumenta o ex-ministro, que reclama da falta de uma nova regulamentação dos artigos da Constituição de 1988 que tratam do assunto.

Ex-ministro do STF, Ayres Britto pensa diferente de Sanches. Para ele, o Senado não poderia repetir o papel da Câmara de aceitar ou não o processo contra a presidente.

— Não cabe ao Senado emitir um segundo juízo de admissibilidade, cabe ao Senado julgar a acusação, como procedente ou improcedente. Admitir a acusação é uma coisa, julgar é outra — pensa o magistrado.

Para ele, o Senado não poderia operar com “casa revisora da Câmara”, por não se tratar de processo legislativo.