O globo, n. 30084, 19/12/2015. Rio, p. 12

Onze oficiais e um segredo

CARINA BACELAR

Grupo é preso sob a acusação de desviar dinheiro de dois hospitais da corporação.

Fábio Galvão “Eles estavam pouco se lixando para a saúde dos policiais militares” Subsecretário de Inteligência.

Operação prendeu 22 pessoas por suspeita de desvio de R$ 16 milhões do hospital da PM. Segundo a investigação, bando era chefiado por oficiais. Um “tumor maligno” vinha crescendo em silêncio no setor de saúde da Polícia Militar e ontem, após um diagnóstico feito por investigadores da Secretaria de Segurança, promotores e corregedores, começou a ser extirpado. Eles deflagraram a Operação Carcinoma, que resultou na prisão de 22 pessoas, incluindo três coronéis da corporação, entre os quais o ex-comandante do Estado-Maior Administrativo Ricardo Pacheco. O grupo, formado por 11 oficiais, além de empresários e lobistas, é acusado de montar um esquema de propinas que, por meio de compras sem licitação, desviou pelo menos R$ 16 milhões de dois hospitais da PM, no Rio e em Niterói.

Foi o maior número de oficiais da Polícia Militar presos em uma operação no estado. Os outros dois coronéis são Kléber dos Santos Martins, ex-diretor do Departamento Geral de Administração e Finanças, e Décio Almeida da Silva, ex-gestor do Fuspom, o fundo de saúde da corporação, para o qual cada PM da ativa colabora com 11% de seus vencimentos, descontados em folha. Além deles, foram denunciados pelo Ministério Público seis majores, uma capitã e um tenente. A investigação foi conduzida pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do órgão, pela Corregedoria da PM e pela Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança.

EX-COMANDANTE É INVESTIGADO

A Corregedoria da PM já instaurou um processo administrativo disciplinar, que poderá resultar na expulsão dos oficiais e de um subtenente, também preso. Todos os acusados vão responder por organização criminosa e dispensa de licitação na 20ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, sendo que os policiais ainda serão julgados por peculato e corrupção passiva, na Justiça Militar.

Um dos 40 mandados de busca e apreensão foi cumprido na residência do coronel Luís Castro, que antecedeu o atual comandante da PM, Alberto Pinheiro Neto, no cargo. O Gaeco informou que Castro vem sendo investigado por suposta participação no esquema. De acordo com promotores, alguns oficiais denunciados disseram, em depoimento, que “ouviram falar” que o excomandante compactuava com as fraudes. Entretanto, segundo investigadores, não há fundamentos que justifiquem um pedido de prisão do oficial.

— Há suspeitas, mas isso não significa que ele é réu. Se, porventura, surgirem provas durante o processo, é possível que seja incluído nas denúncias contra o grupo — disse o promotor Cláudio Calo.

Já Ricardo Pacheco é tido como o mentor do esquema de propinas, que seriam pagas a Décio Almeida da Silva. O gestor do Fuspom também gerenciava o recebimento de repasses da Secretaria estadual de Saúde para os hospitais da PM. As fraudes teriam começado em abril de 2013 e duraram, segundo o Gaeco, até junho de 2014. Promotores afirmaram que pelo menos dez processos de compra de produtos médicos e equipamentos tiveram desvios de recursos. As investigações que deram origem à Operação Carcinoma indicam que pagamentos a fornecedores que se recusavam a pagar propinas eram adiados. Já os que concordavam com o esquema ilícito eram pagos rapidamente. Algumas vezes, esses empresários sequer entregaram as encomendas previstas em contratos.

De acordo com o Gaeco, as propinas variavam, inicialmente, entre 2%e 8% do valor total de cada contrato, mas passaram a ser de 10% “por decisão do coronel Pacheco”.

Em março do ano passado, os oficiais encomendaram, sem licitação, 75 mil litros de ácido peracético, usado para esterilizar equipamentos hospitalares. O produto, segundo a investigação, nunca foi entregue, mas houve um pagamento de R$ 4,2 milhões. E o volume solicitado foi exagerado: de acordo com uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE), seriam necessários 310 anos para que todo o ácido fosse usado nas duas unidades de saúde da PM.

O subsecretário de Inteligência da Secretaria de Segurança, Fábio Galvão, disse que os PMs denunciados pelas fraudes priorizavam, nas compras sem licitação, produtos caros e faziam as encomendas sem pesquisar se havia necessidade para a aquisição dos materiais.

— O coronel Décio recebeu um oficio do chefe da hemoterapia dizendo que 95 potenciais doadores de sangue tiveram de ser liberados porque não havia insumos para a coleta. Enquanto isso, a organização criminosa tentava adquirir produtos de Primeiro Mundo, como um exoesqueleto de R$ 4,5 milhões, um valor absurdo. Quanto mais pagavam, mais faturavam. Eles estavam pouco se lixando para a saúde dos policiais militares — afirmou Galvão.

Na denúncia do Ministério Público contra o grupo, consta que 76% das compras feitas para os hospitais da PM foram fechadas sem licitação. Cabia ao coronel Kleber Martins, ex-diretor do Departamento de Administração e Finanças da PM, autorizar os contratos.

No “núcleo operacional” do esquema estavam oficiais que estabeleciam os valores de cada compra e que negociavam as encomendas com os fornecedores. E, segundo o Gaeco, Ricardo Pacheco foi responsável por uma “manobra esperta”. Após o coronel Armando Porto Carreiro, então diretor do Hospital Central da PM, denunciar que teve sua assinatura falsificada na compra do ácido peracético, o então chefe do Estado-Maior Administrativo abriu uma sindicância — e indicou Kléber Martins para comandá-la.

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Ex-comandante ditaria valor a ser cobrado

 

Suposto articulador do esquema ilícito já sofreu atentado.

Considerado pelos promotores como o chefe da organização criminosa, o coronel Ricardo Pacheco, ex-comandante do Estado-Maior Administrativo da PM, era o “ordenador de despesas”. No topo da pirâmide da corrupção, responsável por transformar o quartel-general da corporação num “balcão de negócios”, como cita a denúncia, ele ditava aos demais acusados o percentual de propina a ser cobrado. Na PM desde 1982, Pacheco chegou a ser superintendente da Guarda Municipal do Rio, de janeiro de 2009 a abril de 2011.

Quando ainda comandava o Estado-Maior, em abril de 2012, Pacheco sofreu um atentado: foi surpreendido por homens armados ao deixar uma concessionária na Barra em um carro blindado. Ele trocou tiros com os suspeitos, que não foram encontrados.

Antes de assumir o Estado-Maior, chegou a ser cogitado para ocupar o comando da PM quando o coronel Erir Ribeiro Costa Filho deixou o posto, em agosto de 2013. Tido como experiente, reuniu-se com o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, na ocasião.

De acordo com as investigações do MP, Pacheco era responsável também por dificultar a fiscalização. “Não foram enviados as contas e os documentos para fiscalização e análise pelo TCE-RJ, em especial nos processos administrativos onde havia fraude”, diz a denúncia do Ministério Público.

Agora, pode passar um bom tempo na prisão. Só a pena por peculato militar varia de três a 15 anos de reclusão.

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Somas eram entregues em dinheiro vivo e dentro de mochilas, diz o MP

 

Instalações de quartel e estacionamento de churrascaria eram usados para pagamento.

O grupo que fraudou as compras na área da saúde da Polícia Militar era discreto, segundo investigadores. Os mentores do esquema não costumavam ser vistos tratando de negócios com empresários, o que era função de oficiais de patentes inferiores, lotados na administração ou no setor hospitalar. De acordo com o Ministério Público, a distribuição das propinas cobradas era feita no quartel-general da PM.

— Havia uma organização criminosa no seio da PM. Ela fez do quartel-general sua sede — disse o promotor Cláudio Calo, do Gaeco.

Segundo o promotor, os valores eram entregues, em dinheiro vivo, dentro de mochilas. Eles eram recolhidos pelos oficiais do “núcleo operacional” do esquema e repassados aos comandantes. Cláudio Calo ressalta que os integrantes da organização eram escolhidos a dedo e nomeados para postos estratégicos pelos “mentores”. Todos os oficiais operadores do esquema eram subordinados ao coronel Décio Almeira da Silva, exgestor do Fuspom, que, segundo os investigadores, também tratava de negócios com vários empresários.

— Eles (os coronéis) escolhiam quem ia ocupar postos como o de recebimento de produtos na central médicohospitalar. Vimos um total desabastecimento e uma estrutura física precária no Hospital Central da PM, no Estácio. As unidades estão uma vergonha e, enquanto isso, havia uma fraude — afirmou Calo.

Era na sede do comando da PM que Décio negociava as propinas com sua equipe, segundo a denúncia do Gaeco. “O grupo se reunia com habitualidade no Fuspom, no interior do QG da PM, assim como em locais públicos, a fim de analisar o que poderia ser objeto de aquisição e onde poderiam fazer aquisições fraudulentas, ímprobas e criminosas de medicamentos e insumos”, diz o texto assinado pelos promotores Cláudio Calo, Daniel Braz e Claucio Cardoso.

HOSPITAL EM ESTADO PRECÁRIO

Foi justamente para disfarçar o movimento criminoso no gabinete de Décio que o coronel Ricardo Pacheco mandou que o subordinado se instalasse em “área reservada no terceiro andar”, a fim de “manter contato direto com o coronel Kleber Martins e com ele mesmo, sendo que, nesse local, eram feitas as tratativas escusas e se arquitetava o recebimento e/ou exigência de vantagens indevidas”, diz a denúncia.

Além de negociatas no quartel, há relatos, que constam na denúncia, de propinas entregues em pelo menos um local público: o estacionamento da antiga churrascaria Porcão Rio’s, no Aterro do Flamengo.

Para o comandante da Corregedoria da Polícia Militar do Rio, coronel Victor Yunes, a ação dos denunciados no esquema é “inadmissível”:

— Aquele quartel-general é um lugar de honra, não um local para criminosos e quadrilheiros. O ano de 2013 e o de 2014 nos trazem muitos pesares. Aprofundamos as investigações a partir do ano passado. Não há mais espaço para corrupção e assassinatos.

Enquanto isso, o hospital da corporação, no Estácio, passa por situação de penúria. No MP, comenta-se que a sorte dos policiais é que, em geral, os baleados vão para outros hospitais estaduais.

— Lá faltam até bisturis — contou uma fonte.