O globo, n. 30068, 03/12/2015. País, p. 3

A retaliação de Cunha

 

Abandonado pelo PT no Conselho de Ética, presidente da Câmara aceita pedido de impeachment contra Dilma, que rebate com ataque; oposição comemora, e PT irá ao STF.

Menos de cinco horas depois de ser abandonado pelo PT no Conselho de Ética, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDBRJ), retaliou e cumpriu as ameaças ao governo, anunciando ter acolhido pedido de abertura de processo de impeachment contra a presidente Dilma, 23 anos após o Congresso analisar a ação contra o então presidente Fernando Collor. Em pronunciamento, Dilma disse que não há qualquer ato ilícito praticado por ela e atacou o adversário, investigado na Lava-Jato e no Conselho de Ética. “Não possuo conta no exterior. Nunca coagi ou tentei coagir instituições ou pessoas”, disse ela, apesar de o pedido de impeachment se basear nas chamadas “pedaladas” fiscais de seu governo. A presidente também afirmou que jamais aceitaria barganhas, embora o Planalto tenha pressionado o PT a apoiar Cunha no Conselho em troca da não aceitação do pedido de impeachment. Governistas disseram acreditar ter ao menos 200 votos, suficientes para barrar o impeachment. Emparedado por uma série de denúncias de corrupção e abandonado pelo PT no Conselho de Ética, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), decidiu vingar-se e acolheu ontem a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff (PT), o primeiro a ser analisado pelo Congresso desde a renúncia do ex-presidente Fernando Collor, em 1992. Cunha concordou com os argumentos apresentados pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal, que apontam a existência de crime fiscal no orçamento deste ano. A tramitação começa hoje, com a leitura da denúncia no plenário.

A presidente reagiu imediatamente. Convocou reunião de emergência e contra-atacou, em pronunciamento em cadeia de TV, citando as acusações contra o adversário.

— Recebi com indignação a decisão do senhor presidente da Câmara. Não existe ato ilícito praticado por mim. Não possuo conta no exterior. Nunca coagi ou tentei coagir instituições ou pessoas — afirmou a presidente.

O PT anunciou que recorrerá ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a decisão de Cunha. Já a oposição comemorou no Congresso. A avaliação é de que Dilma não resistirá se as ruas apoiarem o processo. Ontem, um pequeno grupo de manifestantes pró-impeachment foi às ruas em São Paulo para festejar.

O presidente da Câmara usou o impeachment como moeda de troca para barrar o avanço do processo de cassação a que ele mesmo responde no Conselho de Ética. E aderiu à tese do impedimento logo depois que os três petistas com assento no colegiado, contrariando orientação do Palácio do Planalto, anunciaram que votariam contra ele. Cunha negou ato de vingança.

— Não faço isso por motivação política e rejeitaria (o pedido) se estivesse em desacordo com a lei.

Autor da denúncia de afastamento da presidente, Miguel Reale Jr. sentenciou:

— Cunha escreve certo por linhas tortas porque usou o impeachment o tempo todo como instrumento de barganha. No desespero, joga o impeachment como areia nos olhos da nação.

Após o anúncio de Cunha, o valor das ações da Petrobras subiu nos Estados Unidos.

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Estratégia é jogar o foco da crise em Dilma

 

“É uma decisão de muita reflexão e dificuldade. Não tenho nenhuma felicidade no ato que estou praticando” Eduardo Cunha (PMDB-RJ) Presidente da Câmara dos Deputados

-BRASÍLIA- Cinco horas após ser informado de que a bancada do PT não o apoiaria para evitar a abertura do processo por quebra de decoro contra ele no Conselho de Ética da Casa, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), deflagrou o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, aceitando o pedido apoiado pela oposição e apresentado por juristas em outubro deste ano. Logo depois da decisão do PT, Cunha fez reuniões com aliados e integrantes da oposição que o convenceram que abrir o impeachment seria a única alternativa para criar uma cortina de fumaça em relação às acusações contra ele. Dilma se tornaria o foco das atenções, concluíram.

O anúncio no Salão Verde da Câmara atraiu curiosos e deputados, além da mídia, e foi feito no momento em que o governo aguardava a aprovação do projeto que altera a meta fiscal de 2015, para tentar livrar Dilma de crime de responsabilidade neste mandato. O pedido de impeachment, feito pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal, tem por base as chamadas “pedaladas fiscais” da presidente em 2014, mas que, segundo o Ministério Público junto a Tribunal de Contas da União (TCU), se repetiram este ano.

Cunha disse que tomou uma decisão de natureza técnica. Negou que tenha sido uma retaliação ao anúncio feito pelo PT de não apoiá-lo no Conselho de Ética. Segundo Cunha, Dilma descumpriu a lei orçamentária, ao editar decretos sem número num valor de R$ 2,5 bilhões em 2015, o que caracterizaria crime de responsabilidade no atual mandato.

— Não o faço por nenhuma motivação de natureza política, mas, de todos os pareceres que chegaram a mim, não consegui achar um que conseguisse desmontar a tese. Não tenho nenhuma felicidade no ato que estou praticando — disse Cunha, negando que seja um ato de vingança: — Estou praticando um ato de ofício.

Cunha disse que foi muito cobrado para se posicionar a respeito dos 34 pedidos de impeachment que chegaram a suas mãos. Ele rejeitou 31; ainda há dois pendentes.

— Repito, nunca na história de um mandato houve tantos pedidos de impeachment como neste mandato — alfinetou. CUNHA AVISOU TEMER QUE ACEITARIA O PEDIDO Para convencê-lo a aceitar o pedido de impeachment, os aliados de Cunha sustentaram que, com o foco voltado para Dilma, a oposição deixaria de ser hostil a ele, até porque se concentraria em defender o afastamento da presidente. Segundo líderes da oposição, não houve compromisso com uma mudança de posição de seus deputados no Conselho de Ética. No entanto, ponderou-se que a repercussão da abertura do impeachment, junto às bases eleitorais, poderá dar o discurso para que deputados do conselho mudem seus votos.

— Todo mundo disse a ele que deveria fazer hoje, que ele teria que mudar de pauta. Não dá para negociar mudança de voto neste momento — disse Rodrigo Maia (DEM-RJ), aliado de Cunha, que participou das reuniões ao longo do dia.

Para esses aliados, era importante que Cunha anunciasse sua decisão antes da votação no Conselho de Ética, para que não ficasse caraterizado que houve retaliação. Uma das preocupações é evitar que o ato seja considerado o uso do cargo em benefício próprio.

— O presidente tem a prerrogativa de abrir ou arquivar pedidos de impeachment. Só poderão alegar que usou dessa prerrogativa (para benefício próprio) se ele despachar depois da votação no Conselho de Ética — disse um aliado próximo.

Cunha ouviu os argumentos, recebeu o deputado José Mentor (PT-SP), que era seu interlocutor junto à bancada do PT, e, antes de fazer o anúncio, pediu aos aliados que o deixassem só em seu gabinete. Minutos antes de sair do gabinete, o presidente da Câmara telefonou para o vice-presidente Michel Temer e para o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), para comunicá-los da sua decisão. O impeachment será lido em plenário hoje, às 14h.

Na última segunda-feira, Cunha avisara Temer, durante um almoço entre eles, que deflagraria o impeachment se o PT decidisse votar pela continuidade do processo de cassação do seu mandato no Conselho de Ética. Ontem, Temer não fez movimentos para impedir que Cunha seguisse adiante em sua decisão, depois de ter sido avisado por telefone pelo presidente da Câmara. Apenas avisou ao ministro Jaques Wagner (Casa Civil), que, segunda-feira, já havia sido alertado o vice-presidente das intenções de Cunha. RETALIAÇÃO JÁ ERA ESPERADA PELO PT No PT, já era esperado que Cunha tomasse essa atitude em retaliação à posição dos petistas no Conselho de Ética. Deputados petistas disseram que na sessão de anteontem do conselho havia a disposição de pelo menos dois deputados do PT de votar a favor de Cunha. No entanto, entre terça e quarta-feira, a pressão de militantes cresceu e o presidente do PT, Rui Falcão, usou as redes sociais para se manifestar contra o presidente da Câmara.

Em almoço de Temer com senadores da oposição ontem, o assunto impeachment predominou. Segundo relatos, os comentários giraram em torno do fato de Cunha ter deixado claro que abriria o processo, caso o PT não o apoiasse no Conselho de Ética. O grupo comentou que a qualquer momento o processo de impeachment seria deflagrado e, segundo relatos, Temer teria “lavado as mãos”.

Aliados do governo criticaram Cunha:

— Acho que ele (Cunha) se equivocou com o pedido. O impeachment é o tipo de procedimento que conflagra não só a Câmara, mas o ambiente político como um todo — avaliou o líder do PMDB, Leonardo Picciani (RJ). LÍDER PETISTA SE DIZ INDIGNADO Líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE) disse que está indignado com a abertura do impeachment, mas que o governo vai encarar com “absoluta naturalidade” o decorrer do processo. E chamou o ato de Cunha de “presepada”:

— Recebemos isso com indignação porque não há fato nenhum, a não ser mera disputa política da oposição, e portanto temos que encarar isso com a mais absoluta naturalidade.

Guimarães disse ser melhor saber a posição de Cunha do que viver com “várias espadas nas costas”, numa possibilidade sempre em aberto do início de processo de impeachment :

— É melhor as coisas serem claras do que ficar todo dia com uma espada nas costas, prefiro uma espada única do que várias espadas. O momento é de afirmação da base e do governo — disse o líder petista.

Aliados do governo, em especial do PMDB, consideraram equivocada a decisão do PT de anunciar ontem a posição contra Cunha no Conselho de Ética, já que haveria sessão do Congresso para votar a nova meta fiscal, o que inviabilizaria qualquer votação no conselho.

No início da tarde, o encaminhamento para abertura de um processo de impeachment contra Dilma já era considerado uma realidade. Durante as cinco horas que antecederam o anúncio de Cunha, a movimentação de parlamentares no gabinete do presidente da Câmara foi intensa. Aliado de Cunha, o deputado Paulinho da Força (SD), anunciava.

— O PT nos deu uma oportunidade única, agora — disse.