O Estado de São Paulo, n. 44553, 11/10/2015. Opinião, p. A2
O impeachment do presidente da República, autorizado pela Câmara dos Deputados e processado e julgado pelo Senado Federal, foi adotado no Brasil desde a primeira Constituição republicana, a de 1891, inspirada no regime presidencialista dos Estados Unidos da América. Está atualmente previsto nos artigos 51, inciso I, e 52, inciso I e parágrafo único, da Constituição de 1988.
No constitucionalismo norte-americano, a Suprema Corte tem reconhecido como fundamento jurídico e político para o impeachment as denominadas “great offenses”, no sentido do “common law”, que impliquem “gross breach of trust” ou “serious abuse of power”, ao interpretar a expressão “other high crimes and misdemeanors”, no artigo II, seção 4, da Constituição americana, considerando-as injúrias à sociedade mesma e definindo a má conduta dos homens públicos como “abuse” ou “violation of public trust”.
Nos EUA, o conhecido escândalo Watergate - a invasão clandestina da sede do comitê eleitoral do Partido Democrata no prédio Watergate, em Washington DC, durante a campanha presidencial em 1972, pelos correligionários do presidente Richard Nixon, do Partido Republicano, candidato à reeleição - foi a principal causa do processo de impeachment de Nixon e de sua renúncia, em 1974. Nixon mentiu para o Congresso e para o povo americano ao negar conhecimento da trama, quando, na verdade, as fitas gravadas na Casa Branca demonstrariam o contrário. Foi, em razão disso, submetido a processo de impeachment mediante três acusações básicas (articles of impeachment): obstrução da Justiça, violação do juramento de respeitar a Constituição e as leis do país e desobediência a notificações (subpoenas) do Comitê Judiciário da Câmara para entrega das fitas, negando sua existência. O presidente Nixon apresentou sua renúncia ao Congresso após a decisão da Suprema Corte determinando a entrega das fitas, tornando inevitável sua condenação pelo Senado e a perda do cargo. O vice-presidente Gerald Ford assumiu a presidência da República.
No Brasil, o denominado “esquema PC Farias” - as práticas ilegais de captação de dinheiro na campanha eleitoral para a Presidência de Fernando Collor de Mello, no pleito de 1989, pelo tesoureiro do seu partido, Paulo César Farias - foi a principal causa do processo de impeachment do presidente Collor, em 1992. Collor, no exercício do mandato de presidente da República a partir de 1990, negou que continuasse a manter contato com PC Farias. Mas as “contas fantasmas” comprovaram que o então presidente era beneficiário de pagamentos de suas despesas pessoais pelo ex-tesoureiro, incluída a famosa compra de um Fiat Elba. Sua defesa alegou que eram “sobras da campanha” e invocou a existência de suposto empréstimo - a denominada “Operação Uruguai”. O presidente Fernando Collor foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal da prática de crime comum, por insuficiência de provas, mas foi condenado pelo Senado Federal por crimes de responsabilidade. E apresentou sua renúncia, em 29 de dezembro de 1992, quando já iniciado o julgamento pelo Senado Federal, após autorização da Câmara dos Deputados. O vice-presidente Itamar Franco assumiu a Presidência da República.
O presidente Collor, no processo de impeachment, foi julgado culpado e condenado pelo Senado Federal pela prática de crimes de responsabilidade, por atos atentatórios à Constituição, contra “a probidade na administração” e “a segurança interna do País” (Constituição federal, artigo 85, IV e V). E também por “infração de lei federal de ordem pública” e “procedimento de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”, tipificados nos artigos 8.º, item 7, e 9.º, item 7, da Lei n.º 1.079/50, a lei especial mencionada no parágrafo único do artigo 85 da Constituição. Tudo conforme consta da Resolução n.º 101, de 1992, do Senado Federal.
Laurence Tribe, professor de Direito Constitucional de Harvard, referindo-se ao que denominou “the ultimate remedy”, e o saudoso ministro Paulo Brossard, na sua obra clássica sobre o tema, reconhecem a natureza política do impeachment, invocando a jurisprudência da Suprema Corte americana e do Supremo Tribunal Federal e afirmando que crimes comuns e crimes de responsabilidade são infrações autônomas, de natureza diversa, assim como as respectivas sanções, penal e política.
Se o presidente da República, na campanha presidencial como candidato à reeleição, praticou atos atentatórios à Constituição, especialmente à “lei orçamentária” e à “probidade na administração” (Constituição federal, artigos 85, V e VI, e 167, II); se autorizou a realização de operações de crédito vedadas e definidas como crimes de responsabilidade na Lei n.º 1.079/50 e na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) - respectivamente, artigos 10, inciso 9 (na redação conferida pela Lei n.º 10.028/2000), e 11, inciso 3; e artigos 36 e 73 -, com o propósito de camuflar o déficit fiscal existente e esconder a obscura situação econômica do País causada pela má gestão governamental; e se, além disso, reduziu deliberadamente no final do exercício financeiro - e logo após o término da campanha presidencial - as metas fiscais estabelecidas no início do ano, em fraude à lei (LRF, artigo 53, § 2,º); não há como negar a existência de fundamentos jurídicos e políticos para a instauração de processo de impeachment.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de vincular o princípio da reelegibilidade ao da continuidade administrativa (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1805-2/DF, rel. o ministro Néri da Silveira). Assim, é evidente que o presidente da República, reeleito, não poderá ficar livre “num passe de mágica” de sua responsabilidade política e criminal, a partir do primeiro dia do segundo mandato, pelo que ocorreu na campanha presidencial, se comprovada a sua culpa.
GERALDO BRINDEIRO É DOUTOR EM DIREITO POR YALE, PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, FOI PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA (1995-2003)