O impasse do ensino médio e o funil do Enem

 

SIMON SCHWARTZMAN

O Estado de São Paulo, n. 44559, 17/10/2015. Opinião, p. A2

 

Mais uma vez o País se mobiliza para a grande maratona do Enem – quase 8 milhões de inscritos, disputando cerca de 250 mil vagas nas universidades federais, uma para cada 32 candidatos. Quase todas as vagas serão preenchidas por filhos de famílias mais educadas que cursaram boas escolas privadas ou as poucas escolas públicas federais e de tempo integral. É um jogo de cartas marcadas.

Ao exigir conhecimentos detalhados de linguagens, ciências da natureza, humanas, matemática e redação, o Enem coloca uma camisa de força em todo o ensino médio, com graves prejuízos tanto para os que vão para o ensino superior privado ou estadual, e não dependem desse exame, quanto para os que nunca entrarão numa universidade. Em 2013 havia cerca de 5 milhões de vagas no ensino superior, 4,5 milhões delas no setor privado e somente 321 mil nas federais. Em 2015, dos 22 milhões de jovens entre 18 e 24 anos de idade, 15 milhões já não estavam estudando e, destes, cerca da metade não havia concluído o ensino médio.

Não haveria problema se, para os que nunca entrarão numa universidade federal, o ensino médio, pautado pelo Enem, estivesse contribuindo para melhorar a formação dos estudantes. Mas não é o que acontece. A qualidade do ensino médio brasileiro é muito ruim e não tem melhorado, apesar de custar hoje três vezes mais do que custava, por estudante, dez anos atrás (o que fizeram com o dinheiro?). Existem muitas razões para isso, a começar pela má formação que os alunos trazem da educação fundamental. Mas o problema é agravado pelo currículo pesado, com cerca de 15 matérias obrigatórias, todas dadas superficialmente e pelas quais a grande maioria dos alunos não se interessa, nem consegue acompanhá-las. Muitos abandonam antes de terminar, outros terminam sem aprender nada. E mesmo os poucos que conseguem uma vaga numa universidade federal esquecem rapidamente quase tudo o que tiveram que decorar para passar no Enem.

É preciso mudar isso. No ensino médio, em todo o mundo, aos 15 anos de idade os jovens orientam-se para as áreas de estudo a que se vão dedicar, conforme seus interesse e desempenho. A maioria prepara-se para a vida profissional e só uma minoria vai para os cursos universitários tradicionais. Assim deveria ser no Brasil.

Em vez de ter aulas sobre tudo e não se aprender quase nada, como hoje, deveria haver um núcleo comum de formação geral, com ênfase no uso da língua e do raciocínio matemático, que não ocupasse mais que metade das 2.400 horas requeridas ao longo de três anos, com a outra metade dedicada a uma área eletiva de formação e aprofundamento (ciências físicas, biológicas, ciências sociais, humanidades), que preparasse para estudos mais avançados, ou uma área de formação técnica e profissional que desse uma qualificação para o mercado de trabalho – e também acesso a um curso superior especializado.

O ensino médio deve ser uma etapa de formação e qualificação, geral e profissional, e não um longo cursinho de preparação para uma universidade na qual poucos entrarão.

O Enem, no seu formato atual, tenta servir de padrão de qualidade para o ensino médio e funcionar como um grande vestibular unificado para as universidades, mas não consegue fazer bem nenhuma das duas coisas. Ele precisa ser modificado, com ênfase na primeira função e tomando em conta a necessidade de diversificar o ensino médio. Em lugar de uma prova única, deveria haver uma avaliação de competências gerais de uso de linguagem e raciocínio matemático para todos e avaliações diferentes, opcionais, para as diferentes áreas de formação e aprofundamento. Para o ensino técnico de nível médio é necessário desenvolver um sistema de certificações para as diversas áreas profissionais de formação. Em vez de uma maratona nacional, como hoje, os exames poderiam ser dados em diferentes momentos e locais, fazendo uso de técnicas computadorizadas como as adotadas pelo Aptitude Test ou Scholastic Assessment Test (SAT) e por provas semelhantes nos EUA.

A ideia de transformar o Enem num exame vestibular unificado era tornar o acesso ao ensino superior mais democrático. E, de fato, o sistema permite que estudantes de qualquer cidade possam candidatar-se a uma vaga em qualquer universidade federal do País. Mas ao criar um grande funil, criou uma situação mais elitista do que antes: as instituições regionais perdem vagas para alunos vindo de regiões mais ricas, as notas de corte são cada vez mais altas e as universidades perdem a possibilidade de selecionar alunos mais adequados a seus projetos pedagógicos e profissionais. A separação entre alunos cotistas e não cotistas também não ajuda, porque o funil se repete dentro de cada grupo (em 2013 havia 27 candidatos por vaga entre os cotistas e 26 candidatos por vaga entre os demais).

A pontuação das notas do Enem, em centésimos, só serve para classificar os alunos para as universidades. O correto seria fazer uso de conceitos amplos, como os de A a D ou de excelente a insuficiente. Os alunos poderiam usar os conceitos em seus currículos e as universidades, requerer níveis mínimos de desempenho em áreas específicas para selecionar seus alunos, em combinação com critérios próprios.

Não será fácil passar do atual sistema para outro como sugerido aqui. A Base Nacional Comum Curricular, que está sendo discutida, precisa adequar-se a um ensino médio diversificado. As escolas precisarão adaptar-se, haverá necessidade de realocar professores e formá-los para novas práticas. E há muitíssimo que aprender para criar um sistema amplo de educação técnica e profissional de nível médio com as respectivas certificações profissionais. Mas é necessário começar, lembrando que, considerando a péssima situação em que nos encontramos, não há nada a perder.

 

* SIMON SCHWARTZMAN É PESQUISADOR DO INSTITUTO DE ESTUDOS DO TRABALHO E SOCIEDADE. E-MAIL: SIMON@IETS.ORG.B