O globo, n. 30071, 06/12/2015. País, p. 4

Investigadores veem digital de Cunha em nove MPs que beneficiam bancos

 

GABRIELA VALENTE E SERGIO FADUL 

Estratégia passa sempre por emendas; presidente da Câmara não comenta.

O bilhete manuscrito apreendido na casa do chefe de gabinete do senador Delcídio Amaral (PT-MS) expôs uma pequena parte da grande ofensiva que atua no Congresso para mudar ou criar leis com objetivo de favorecer negócios envolvendo bancos em liquidação extrajudicial. A articulação começou em 2010 e procurou alterar, por intermédio de emendas e contrabandos, pelo menos nove medidas provisórias. Por trás de toda essa pressão estão em jogo dezenas de bilhões de reais.

Investigadores que acompanharam e analisaram a tramitação dessas nove MPs afirmam que é possível identificar nelas a digital material ou intelectual do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). A atuação do atual presidente da Câmara a favor dos interesses dessas instituições ficou explícita, segundo esses técnicos, a partir da MP 472, convertida depois na Lei 12.249.

Após a sanção da lei, Cunha levou Marcos Catão Magalhães Pinto, um dos herdeiros do espólio do Banco Nacional, para um encontro com o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams. Ali cobrou que os benefícios da nova lei contemplassem também os bancos em liquidação extrajudicial. O objetivo era forçar o governo a aceitar créditos do chamado Fundo de Compensações Salariais (FCVS) no pagamento de dívidas dos bancos em liquidação com a União.

A Lei 12.249, também conhecida como “Refis das Autarquias”, criou um plano especial para pagamentos de dívidas com fundações ou autarquias, como Banco Central e INSS. Por emenda parlamentar, foi incluído no artigo 65 a expressão que poderiam ser usados no refis “instrumentos da dívida pública federal”. Na época, o Banco Nacional tinha em carteira nada menos do que R$ 26,33 bilhões em FCVS, valor que hoje chega a R$ 33 bilhões.

AGU CONFIRMA ENCONTRO

A AGU alegou que tinha uma interpretação da lei diferente da de Cunha, e recusou o uso desses créditos. Procurada, a assessoria da AGU confirmou o encontro do ministro com Cunha e Magalhães Pinto, mas não quis comentar o conteúdo das conversas. Em meados de 2011, reportagens já levantavam suspeitas sobre a MP 517, apelidada de MP Frankenstein.

No mercado financeiro, correm rumores de que o BTG Pactual — do banqueiro André Esteves, preso na Operação Lava-Jato — teve negociações avançadas para comprar o Nacional, e teria até uma opção de preferência de compra do banco. Questionada sobre a existência desse instrumento, a assessoria do BTG Pactual afirmou apenas que não comentaria a informação.

A tentativa na MP 472 esbarrou na AGU, mas, a partir daí, a atuação no Legislativo ficou cada vez mais agressiva e se concentrou em duas frentes: conseguir permissão para a utilização do FCVS para pagamento de dívidas, e obter benefícios tributários para bancos que sofreram intervenção extrajudicial.

A estratégia passa sempre pela inclusão de emendas — conhecidas no jargão do Congresso como “jabutis” — em medidas provisórias do governo que não tratam diretamente do assunto. Os alvos foram desde uma MP tratando de financiamento do Programa Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação até uma que referia-se a tributação de importações. As iniciativas buscam benefícios crescentes, e a cada revés são repetidas mais adiante em outra MP.

Uma dessas MPs, a 627, de 2013, teve Cunha como relator. O GLOBO revelou na última quarta-feira que o BTG Pactual orientou Cunha a alterar trechos dessa MP. Convertida na Lei 12.973 em maio de 2014, ela contém dois dos mais robustos benefícios obtidos pelos interessados nos negócios com bancos em liquidação. O artigo 109 retirou para pessoas jurídicas que estejam em liquidação ordinária judicial ou extrajudicial ou em falência o limite de 30% à compensação tributária de ganhos de capital. Assim, os bancos em liquidação ganharam o direito de utilizar 100% dos créditos tributários. A outra vantagem foi a ampliação de 9% para 15% da alíquota de CSLL para compensação tributária. Procurado, Cunha não quis comentar o envolvimento nas MPs.

Em duas ocasiões — nas MPs 651, de 2014; e 668, de 2015 —, emendas de interesse do lobby foram apresentadas pelo deputado Manoel Júnior (PMDB-PB), fiel escudeiro de Cunha. As alterações propostas por ele beneficiariam diretamente o BTG Pactual, que adquiriu o Bamerindus. As emendas complementariam os benefícios da MP 627. Se a MP 627 aumentou o limite de compensação, as emendas de Manoel Júnior ampliavam o benefício para instituições financeiras que já estivessem saído da liquidação extrajudicial. Exatamente a situação do Bamerindus. O artigo foi vetado na sanção da lei. No caso da MP 651, Manoel Júnior incluiu uma emenda tentando novamente obrigar o BC a aceitar o FCVS como pagamento de dívidas e adicionou regras que facilitassem a conversão dos FCVS em títulos do Tesouro Nacional.

Antes, outro aliado de Cunha, o deputado João Carlos Bacelar, (PR-BA) tentara emplacar a mesma mudança ao relatar a MP 517. Bacelar também incluiu uma emenda para que o FCVS fosse aceito no pagamento de dívidas dos bancos em liquidação. A tentativa também fora vetada.

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Rastreamento aponta que lobby foi se diversificando

 

Os investigadores que rastrearam as MPs objeto do lobby dos bancos liquidados afirmam que, na origem, o grande negócio era o Banco Nacional e a bilionária carteira de FCVS da instituição. Com o tempo, houve uma diversificação e passaram a atuar também visando a outros bancos. Num resumo, consideram que a MP 510 abriu a porta, a 627 a escancarou e nas medidas 668 e 675 tentaram eternizar os benefícios para antes e depois da liquidação dos bancos.

Sobre a MP 608, de 2013, que recebeu emenda do deputado Eduardo Cunha, os investigadores acreditam que o conteúdo era o que menos importava. O assunto é citado no bilhete encontrado na casa do chefe de gabinete do senador Delcídio Amaral, Diogo Fernandes, preso na LavaJato, como motivo do pagamento de R$ 45 milhões pelo BTG Pactual. Os investigadores suspeitam que um dos objetivos da emenda era inserir Cunha nas discussões. Outro seria afastar o risco de que benefícios conquistados em outras MPs, como na 510, caíssem ou fossem questionados. Em sua defesa sobre o bilhete, Cunha afirmou que sua emenda não beneficiava o BTG/Bamerindus.