A guerra está presente–vejamos os mapas

 

OLIVEIROS S. FERREIRA

O Estado de São Paulo, n. 44600, 27/11/2015. Opinião, p. A2

 

Caso ouçam o que muitos de nós, intelectuais, estamos dizendo, os Estados-Maiores das potências reunidas no G-20 terão dificuldade em traçar seu plano de contingência para enfrentar a ameaça do Estado Islâmico. Evitando nos escutar, deverão decidir que tipo de guerra travarão: uma guerra entre Estados, como ordena a sabedoria acadêmica, ainda que de guerrilha, ou uma guerra de civilizações, como pretende o Estado Islâmico.

Os que valorizam o ensinamento acadêmico preocupam-se com discutir se François Hollande teve razão ao dizer que os atentados em Paris foram atos de guerra. Como não foram cometidos por um Estado organizado segundo a cartilha ocidental, cedemos à tendência de não considerar que haverá um permanente estado de guerra se praticamos e/ou sofremos atos de violência que impõem vontades.

Como afirma o Estado Islâmico, a guerra atual é de civilizações. O Ocidente já conheceu esse tipo de guerra, em que os contendores invocam a divindade para mascarar seus objetivos de poder. Exemplo clássico são as guerras de religião na Europa. As potências ocidentais, sobretudo França, Inglaterra e Alemanha, devem ter pleno conhecimento do que está em jogo. Só encontraram um final feliz na Paz de Vestefália, que selou os 30 anos daquilo que, aos olhos dos analistas de hoje, foram tempos de barbárie e eliminaram praticamente a metade da população alemã.

Observa-se hoje o esforço de alguns setores intelectuais em apontar como causa dos atentados não uma visão militante de determinado conjunto de valores ditos islâmico-ortodoxos, mas a ação dos EUA no Iraque e da França na Síria. Na tentativa de tudo explicar por processos econômicos e políticos imperialistas, perde-se a oportunidade de aprofundar o conhecimento das razões que levam cidadãos do Ocidente a aceitar as proposições do Estado Islâmico, predispondo-se a morrer e a formar quadros terroristas.

A França há de se lembrar de que na época da luta na Argélia era elegante pensar e agir contra o colonialismo, e os combatentes da FLN e essa própria organização não eram vistos como inimigos da civilização europeia. E de que o general Massu tentou eliminar a influência da FLN sobre as populações da Argélia usando métodos pouco “ocidentais”. Ganhou a batalha de Argel, mas não pôde evitar o triunfo psicológico e, depois, político do inimigo, que se traduziu, antes de tudo, pelo enfraquecimento do Estado francês e levou ao golpe dos coronéis em 1958.

Não sabemos quanto tempo as potências reunidas no G-20 levarão para vencer o Estado Islâmico lançando mão de pequenos bombardeios a alvos de importância estratégica menor, quando se sabe que a guerra das civilizações se destina à conquista de corações e mentes, mormente os de jovens. O seu objetivo último, mais do que conquistar um pedaço de território, é converter as populações aos ideais de uma liderança nem sempre personificada. E embora não se caracterize por combates semelhantes aos que nos acostumamos a ver no cinema, nada impede que o inimigo esteja declarado e as ações produzam destruição e morte.

Os leigos discutem mudanças na estratégia dos 20, a tônica sendo de crítica ao colonialismo europeu, ao imperialismo ianque e ao fato de que Barack Obama não se dispõe a enviar tropa de terra ao território do Estado Islâmico. O tempo gasto na procura de exemplos das más ações do Ocidente provoca mais demora para que constatemos que, entre civilizações ou entre Estados, a guerra aí está.

A decisão de Obama, apoiada por conselheiros civis e militares, responde a uma interpretação do que de fato seja a guerra das civilizações e às urgências político-eleitorais dos EUA. Um exame, superficial que seja, do que se poderia chamar de filosofia ou grande estratégia do Estado Islâmico fortaleceria a posição do presidente dos EUA, que sabe que seu governo não tem condições de agir de maneira tão abrangente quanto a agressão requereria. Despreza, porém, o fato de que a Tempestade no Deserto, que libertou o Kuwait ocupado por Saddam Hussein, mobilizou 500 mil homens.

Embora o quadro geral seja muito diferente, os que defendem a intervenção terrestre deverão considerar o custo humano e econômico da Guerra dos 30 Anos na Alemanha e a complexidade da ação do general Massu na Argélia, defendendo território francês contra as ações da guerrilha reunida sob a bandeira da FLN. E considerar que, sendo o objetivo da guerra a destruição ou sustentação dos valores que caracterizariam as civilizações em conflito, a conquista de pessoas e/ou grupos não reside em apenas ações militares, mas num conjunto de políticas capazes de demonstrar a superioridade desses valores.

Os conselheiros civis e militares de Obama não podem deixar de pensar geopoliticamente, ainda que o Partido Democrata corra o risco de perder a eleição. Desembarcando ou não na Síria, os EUA já são considerados em muitos círculos como responsáveis pelo surgimento do Estado Islâmico. Afinal, invadiram o Iraque e, apesar de seu poderio e da colaboração de intelectuais de valor, cometeram inúmeros e graves erros políticos que eliminaram esse Estado como potência sem dar solução a problemas geopolíticos decorrentes da deposição de Saddam e da extinção, na prática, do partido Baath.

O raciocínio mais correto, que mais se adapta aos fatos e também os explica, não pode desprezar os mapas. Muito menos poderá desprezar aquele que a velha geopolítica considerava ser o principal, que indica que quem domina o coração da Terra domina o mundo. O que significa que, desde já, mesmo antes de a França apoiar-se na Rússia para justificar suas incursões militares contra o Estado Islâmico na Síria, a posição dos EUA é delicada. A base que a Rússia mantém na Síria poderá transformar-se num enclave que lhe permita afirmar-se como potência extremamente influente em toda a região. A bandeira russa tremula no Levante.

 

* OLIVEIROS S. FERREIRA É PROFESSOR DA USP E DA PUC-SP, MEMBRO DO GABINETE E OFICINA DE LIVRE PENSAMENTO ESTRATÉGICO. SITE: WWW.OLIVEIROS.COM.BR