O globo, n. 30079, 14/12/2015. Opinião, p. 14

Há razões técnicas

 

Dilma é acusada de cometer crimes previstos na Carta, mas não há certeza da cassação.

A aceitação do pedido de impeachment da presidente Dilma, representante de um bloco político no poder há 13 anos, enraizado no movimento sindical, com apoio de “organizações sociais” cevadas com dinheiro público durante todo esse tempo, ela mesma criada pelo expresidente Lula, importante líder popular, teria de gerar muita discussão e tensões políticas. Com mais razão ainda porque o pedido de impeachment, encaminhado pelos juristas Hélio Bicudo — fundador dissidente do PT —, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal, foi acolhido pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), além de adversário do PT, investigado pela Operação Lava-Jato, e dono comprovado de contas na Suíça, com dinheiro de origem suspeita, não declarado tanto quanto as contas.

Com essa folha corrida e ainda sendo processado no Conselho de Ética da Casa, por quebrar o decoro ao ter garantido perante a CPI da Petrobras não possuir contas no exterior, Cunha aceitou o pedido de impeachment, ato de evidente revanche contra PT e Dilma. Afinal, não teve do governo e partido a ajuda que chegou a ser barganhada com ele.

Mas nada disso desqualifica a aceitação do pedido de abertura do processo de impedimento, como entendem ministros do STF. Importou naquele ato que o presidente da Câmara agiu dentro de suas prerrogativas. O fato de o posto estar sendo ocupado por Eduardo Cunha é desanimador, mas não torna ilegal a abertura do processo. Não é golpe.

Há, ainda, o debate sobre crimes de responsabilidade praticados por Dilma no primeiro mandato e também em 2015, no início do segundo governo, por atropelar preceitos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Por exemplo, emitir decretos para liberar gastos não previstos no Orçamento aprovado pelo Congresso, assim como usar bancos federais para financiar despesas do Tesouro.

Os delitos foram mapeados pelo corpo técnico do Tribunal de Contas da União. Com base em relatório sobre as infrações, as contas de 2014 foram rejeitadas pelo TCU, veredicto ainda a ser deliberado pelo Congresso. As ilegalidades cometidas este ano foram incluídas no pedido de impeachment. A crônica das manipulações foi relatada em reportagem do “Valor”, edição de sextafeira, baseada em documento de técnicos da Secretaria do Tesouro, de alerta ao governo Dilma, ainda em 2013.

Pode-se criticar, mas o não cumprimento da Lei de Orçamento está relacionado na Constituição como passível de ser punido com impeachment. A Carta estabelece que o presidente só pode ser processado por atos cometidos durante o mandato. O dispositivo, porém, foi instituído antes de estabelecida a reeleição. Portanto, a depender do magistrado, pode-se entender que o segundo mandato é uma continuação do primeiro, parte de um mesmo governo de oito anos. Existe, portanto, base técnica para o pedido de impeachment. Isso não significa que esteja garantida a condenação da presidente Dilma. Sabe-se, desde a cassação de Collor, que o impedimento é muito condicionado pela conjuntura política.

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Plantando bananas

AUGUSTO RIBEIRO

O Brasil retrocede com o revanchismo político e se afasta do clube das nações desenvolvidas.

Há algumas décadas, o Brasil era conhecido pelos países mais desenvolvidos como uma das repúblicas de bananas da América do Sul. As fragilidades de nossas instituições e a miséria de nosso povo justificavam o apelido jocoso. No entanto, o processo de amadurecimento da democracia brasileira nas últimas três décadas resultou em um movimento crescente de admiração ao Brasil por parte de nossos irmãos do Norte.

Mas surge hoje um vulto de autoritarismo com cheiro de naftalina que se apresenta com o que há de pior na política brasileira, unindo oportunistas ancorados em alguns dos maiores partidos do país e grupos de indivíduos que não aceitam ter seus privilégios ameaçados pelo avanço das liberdades democráticas. Estes tentam, com um processo de impeachment eivado de ilegalidade, derrubar uma presidente eleita democraticamente.

A justificativa utilizada por tais personagens traz a marca do golpismo. O impeachment, conforme dispõe a Constituição federal, só cabe nos casos em que haja crime de responsabilidade cometido pelo presidente da República. As tais pedaladas fiscais não se enquadram em nenhum tipo penal disposto na legislação vigente; se não há crime previsto em lei, não há pena. Referem-se aos atrasos nos repasses do Tesouro aos bancos públicos para o pagamento de benefícios sociais. Por este atraso, para a prestação dos serviços contratados, os bancos cobram juros. Não se trata, portanto, de uma operação de crédito, que poderia ensejar o enquadramento no artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, como querem forçar os defensores da tese golpista. O impeachment nestas condições não passa de uma aberração jurídica, um golpe contra a ordem democrática, que se apresenta sem tanques ou fuzis, mas com artifícios explícitos de manipulação jurídica.

Um país cujo Congresso Nacional se subjuga às chantagens articuladas por um deputado alçado à presidência da Câmara dos Deputados sob um mar de denúncias de corrupção; um país cuja oposição aceita ser liderada por esse mesmo personagem apenas por uma vã esperança de chegar ao poder; um país que — em que pesem todos os erros e desmandos cometidos pelo partido governista — tem governantes que conseguem tirá-lo do mapa da fome em apenas uma década, mas não consegue reconhecer o que isto significa sob uma ótica humanitária e desenvolvimentista. Esse país não pode ser sério, como diria o colonizador.

Ao colocar tudo isso a perder por conta de revanchismo político, o Brasil recua no tempo e mostra que talvez ainda não estejamos preparados para ingressar no mundo das nações desenvolvidas. Enquanto a bolsa sobe ao sabor dos especuladores do “mercado”, ávidos pela queda do governo eleito democraticamente, desabam em proporção inversa nossa credibilidade e soberania.

Mas isso é detalhe. Que venha o impeachment, e com ele, as bananas.