Rio vivo

Cristovam Buarque 

17/11/2015

Na mesma semana, o mundo se horrorizou com o atentado terrorista em Paris e com o acidente em Mariana. O atentado na capital francesa ficará como um dos mais brutais atos de fanatismo na história da humanidade. Mas, pelo número de mortos, pelas circunstâncias da inocência das vítimas durante as atividades normais, pelas consequências sobre milhões de pessoas, pode-se dizer que o acidente ecológico em Mariana também foi ato de terrorismo por omissão.

O terror que atacou Mariana tem por causa a ganância empresarial que põe o lucro acima de todos os interesses; a irresponsabilidade técnica, que não toma os cuidados necessários; e a corrupção governamental, que não fiscaliza com cuidado e rigor as atividades produtivas. Quando os três fatos se unem, o quadro do desastre está estabelecido. O mundo precisa entender e vencer a luta contra todo terrorismo, mas não venceremos se não entendermos onde está a fábrica de terroristas e não apenas os terroristas em si.


Para evitar a repetição de desastres do terror ecológico, é preciso pôr os cuidados com o meio ambiente na frente da ganância produtiva. Entender o que ocorre por trás do terror ecológico. A ganância e a irresponsabilidade não seriam possíveis sem a voracidade pelo consumo que caracteriza o modelo atual, o Brasil particularmente. Não vamos parar o terrorismo se não aceitarmos que o crescimento econômico tem de estar subordinado ao equilíbrio ecológico, mesmo que signifique menor crescimento e menos consumo. Nós todos, pela voracidade de consumir bens industriais, terminamos indiretamente contribuindo para que ocorra o terro ecológico. Da mesma forma que decisões vitoriosas terminaram criando a base para o terrorismo de fanáticos políticos ou religiosos.


Ao lado disso, é preciso recuperar o que for possível depois do desastre. As vidas perdidas em Paris, como as vidas de Mariana, não serão recuperadas. Mas a vida do Rio Doce ainda pode ser recuperada ao longo de anos e décadas se agirmos com o necessário cuidado e empenho. A tarefa do Brasil hoje é ressuscitar seus rios, quase todos moribundos, sobretudo o Rio Doce, que foi assassinado. Isso é possível. Com o Fundo para recuperar o Rio Doce, proposto pelo fotógrafo Tião Salgado, poderemos ter outra vez com vida esse que é um dos maiores patrimônios da civilização brasileira, herança que recebemos da natureza e das gerações passadas.


Estávamos recuperando o patrimônio e apagando parte da tragédia do terror ecológico da última semana no Rio Doce, fazendo-o um Rio Vivo, apesar de tudo. Não adiantam pequenas multas que se perderão nos cofres dos governos, e certamente vão servir para cobrir os deficits fiscais das prefeituras e estados vitimados. Quem matou o Rio Doce tem de investir para recuperá-lo com o montante de recursos que forem necessários, não apenas com pequenas contribuições e multas que servirão para outras finalidades em  momento de crise fiscal como a que atravessamos.


A cada ano percebemos crimes ecológicos, e nós e as futuras gerações sofrem com as consequências, mas pouco fazemos para evitar novos acidentes e recuperar os efeitos provocados. A única forma de evitá-los é mudança na mentalidade pela educação das crianças, no sentido de valorizarem o meio ambiente acima do consumo. Combatendo a voracidade do consumo que aceita destruir o meio ambiente para aumentar a produção. Além disso, é preciso formar empresas responsáveis e governos incorruptíveis, atentos à fiscalização dos riscos ecológicos.


Só isso impediria o assassinato lento de nossos rios como está acontecendo com o São Francisco, e o assassinato brutal do Rio Doce cometido na semana passada. Mas é sobretudo fundamental recuperar os efeitos dos desastres criados: ressuscitando os rios brasileiros, começando pelo nosso Rio Doce, que precisa ser também um rio vivo. Essa é luta de todos nós.

Correio braziliense, n. 19167 , 17/11/2015. Opinião, p. 13