O globo, n. 30054, 19/11/2015. Economia, p. 22

Visita indesejada

 

MÍRIAM LEITÃO

A viagem da lama por Minas e ES.

Perguntei ontem às 13h40m ao prefeito de Colatina quando a lama chegaria na cidade. “Ela chega depois das seis da tarde, já passou por Mascarenhas, a última barragem, e está a dez quilômetros.” Assim têm vivido os mineiros e capixabas abastecidos pelo Rio Doce: à espera da visita indesejada. A lama chegou antes das seis. O jornal inglês “The Guardian” disse que é uma “catástrofe em câmara lenta”.

Oprefeito de Colatina, Leonardo Deptulski, é também presidente do Comitê da Bacia do Rio Doce e vinha fazendo um trabalho de “formiguinha”, como disse ele, para recuperar o rio. Agora ele sabe que perdeu o trabalho que fez e está lutando na emergência:

— Já suspendemos a captação de água e estamos preparados para trazer água de uma lagoa aqui perto, através de caminhão pipa, levando para a estação de tratamento. Não será nem de longe suficiente para o abastecimento. Serão dias de racionamento. A nossa única fonte de água era o Doce.

O prefeito disse que técnicos de Governador Valadares estão chegando para implantar a mesma técnica que foi usada na cidade mineira:

— Eles colocaram na água produtos de coagulação de água bruta, que aglomera as partículas sólidas para ajudar na limpeza do rio.

Ainda não se sabe se isso consegue fazer a limpeza dentro dos padrões exigidos, mas foi uma medida emergencial. Faltam análises, faltam informações:

— Ainda não há estudos técnicos sobre como ficou a água, que chance tem o rio de se recuperar. Marcamos para o dia primeiro uma reunião do Comitê da Bacia para contratarmos estudos para começar a avaliar se esse sedimento vai sair, qual a dimensão do impacto na flora e na fauna. Com a turbidez e a ausência de luz solar, morreram peixes e plantas.

Deptulski é um entusiasta do projeto de Sebastião Salgado de proteger e refazer os milhares de olhos d’água do Rio Doce e de seus afluentes. O projeto do Instituto Terra também inclui o tratamento de esgoto rural em todas as propriedades. Isso faz com que a água que volta para o rio seja limpa, ao mesmo tempo que aumenta a produção de água para toda a bacia. Na última vez que nos falamos, antes da tragédia, Deptulski contou que estava conseguindo empréstimo internacional para tratar o esgoto da cidade:

— Agora sinto que perdi uma década. O rio já tem sofrido muito com o assoreamento a cada ano. A cada cheia recebe mais carga de assoreamento. Estávamos trabalhando para diminuir isso através do treinamento de produtores rurais para usar as técnicas corretas no uso da terra, e do incentivo à cultura da conservação do solo e da água.

Infelizmente, o que se perde é mais que uma década, e na verdade ninguém sabe ao certo o quanto o país perdeu nessa viagem da lama indesejada pelo Rio Doce; depois de matar moradores de Bento Rodrigues.

Mas o prefeito Leonardo Leptulski não desistiu. Acha que é hora de retomar, mesmo com o retrocesso, o esforço para salvar o Rio Doce.

— Essa tragédia exige de nós, como sociedade, a cobrança maior da mineração. Não é possível continuar esse modelo de acumular montanhas de rejeitos, sem nem fazer barragens de anteparo. Temos que adotar padrões mais seguros de produção — disse o prefeito.

Ele acha que não há ainda como mensurar o tamanho dos efeitos colaterais do que está acontecendo agora, mas considera que tem que ser feito um fundo gerido pelo Comitê de Bacia, com a presença do governo, e muita transparência para que a sociedade acompanhe sua aplicação. Esse fundo financiaria os projetos de recuperação que já estavam formulados, como o do Instituto Terra, e outros para enfrentar os efeitos da tragédia. Tudo continua sendo necessário. Só que agora a urgência aumentou, e a tarefa ficou mais pesada.

— Há trabalhos urgentes que têm sido financiados pelas empresas, como o do abastecimento de água. Mas depois é preciso revitalizar a Bacia, controlar os usos, converter a agricultura para novas práticas. Precisamos tratar os afluentes porque o que foi perdido na calha do rio pode ser recomposto pelos outros rios da bacia, se eles também forem protegidos.

Depois de Colatina, a lama seguirá seu caminho até Linhares e, por fim, entrará no mar, onde já se sabe que espalhará a morte entre espécies marítimas.