O globo, n. 30052, 17/11/2015. País, p. 3

Impacto profundo

 
ANA LUCIA AZEVEDO

Acidente em Mariana é o maior em volume de material despejado por barragens de rejeitos.

Especialistas avaliam que recuperação da bacia do Rio Doce levará décadas e custará bilhões de reais.

O mar de lama em Mariana provocou também um triste recorde: a tragédia em Minas é apontada por especialistas como o maior acidente da História em quantidade de material despejado por barragens de rejeitos de mineração, informa ANA LÚCIA

AZEVEDO. Ao todo, 62 milhões de metros cúbicos de lama vazaram no último dia 5, matando pelo menos 12 pessoas, deixando milhares sem água e ameaçando o Rio Doce. É uma quantidade duas vezes e meia maior que o segundo pior acidente do gênero, que aconteceu em uma mina canadense, no ano passado. A tragédia de Mariana é o maior acidente da História em volume de material despejado por barragens de rejeitos de mineração. Os 62 milhões de metros cúbicos de lama que vazaram dos depósitos da Samarco no dia 5 representam uma quantidade duas vezes e meia maior que o segundo pior acidente do gênero, ocorrido em 4 de agosto de 2014 na mina canadense de Mount Polley, na Colúmbia Britânica, diz o pesquisador Marcos Freitas, coordenador executivo do Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais ( Ivig), ligado à Coppe/ UFRJ.

Freitas é um dos que participam da criação do Grupo de Recomposição da Bacia do Rio Doce, iniciativa acadêmica. Como outros especialistas, ele conta em anos, possivelmente décadas, o tempo de recuperação da bacia, onde vivem cerca de três milhões de pessoas. E na casa dos bilhões de reais os custos de recuperação de estruturas urbanas e ecossistemas destruídos.

— Não podemos estimar agora o tempo e o dinheiro que custará a recuperação. Vai depender de cada área e será caro. A região existente no raio de uns 30 quilômetros da área das barragens, por exemplo, pode estar perdida. Está coberta por camada espessa de lama. A recuperação será tão cara que pode se mostrar inviável financeiramente. Quando a lama secar, vai se tornar terra endurecida, um chão de ferro, uma terra de ninguém — alerta o pesquisador, que é membro do IPCC e já dirigiu a Agência Nacional de Águas. PELO MENOS DEZ ANOS DE RECUPERAÇÃO Ele não crê que a recuperação da extensa área afetada, de Minas ao Espírito Santo, leve menos do que dez anos. Até porque alguns dos efeitos da destruição e da poluição colossal de uma região de mais de 700 quilômetros de comprimento só poderão ser percebidos após anos. Desastres ambientais têm vida longa. É o caso do que aconteceu no Exxon Valdez. O navio vazou óleo para uma das regiões mais intocadas do Alasca há 26 anos. Mas até hoje pescados nobres, como arenque e caranguejo gigante, não voltaram às redes dos pescadores. O Exxon Valdez virou Oriental Nicety e já foi até desmantelado, ano passado, na Índia. Mas o Alasca ainda sofre.

— Embora tenham naturezas diferentes, esses acidentes nos mostram como é caro e complexo recuperar um desastre ambiental. E como são eventos de longo prazo. Tragédias de vida longa. Para se ter uma ideia, a petroleira BP criou um fundo de US$ 20 bilhões para custear a recuperação do Golfo do México, poluído pelo vazamento da plataforma Deepwater Horizon, em 2005, o pior vazamento de óleo no mar — explica Alessandra Magrini, professora do Programa de Planejamento Energético e Ambiental da Coppe e especialista em análise de risco.

Desastres como o da Samarco, diz Alessandra, são amplos no tempo e espaço. E exigem planejamento criterioso e urgente.

— E ainda não há nada de concreto em andamento. Vemos medidas emergenciais. Mas enfrentamos um problema que exige uma ação rápida de planejamento. Já vimos esse filme antes, mas, desta vez, ele é maior e mais dramático — destaca. MAL CRÔNICO O biólogo e geógrafo Rodrigo Medeiros, vice- presidente da Conservação Internacional, ONG que desenvolve projetos sobre preservação da biodiversidade e seu impacto social, diz que a tragédia de Mariana é uma doença simultaneamente aguda e crônica:

— À medida que passa, a lama mata imediatamente de pessoas a plantas e animais. E, ao se depositar nas margens e no leito do Rio Doce, ela se torna um mal crônico, que continua a impactar o ambiente.

Segundo ele, florestas centenárias às margens do Doce, já dizimadas pelo desmate, sofrerão perdas, já que a lama, ao secar e se compactar, asfixia a vegetação.

— Ecossistemas já castigados e muito frágeis vão sofrer ainda mais. O Rio Doce já sofria. Agora está à morte. Temos que aproveitar este momento para recuperar não apenas a área destruída, mas revitalizar a bacia — observa Medeiros.

A lama que engoliu Bento Rodrigues permanecerá por muito tempo a chocar quem a vê. Mas Moacyr Duarte, pesquisador sênior do Grupo de Análise de Risco Tecnológico e Ambiental ( Garta) da Coppe/ UFRJ, preocupa- se também com o chamado risco invisível. Aquele causado pelo acúmulo do silt — mistura de ferro, terra e água —, arrastado da mineradora para o leito do Doce e suas margens.

— Ele pode cobrir áreas imensas, desorganizar o fundo do rio, mexer com variáveis ambientais, desequilibrar ecossistemas. Ao longo de anos, silenciosamente, fora do alcance dos olhos. Ele altera o fluxo do rio, sua dinâmica — diz.

Uma das consequências mais evidentes da mudança de curso do Rio Doce e do acúmulo de sedimentos será a mudança no padrão de inundação.

— Com a estação chuvosa, que vai até abril, poderemos ter enxurradas em outras áreas na bacia do Rio Doce. Isso precisa ser rapidamente mapeado. Serão precisos pelo menos 40 dias para que as pessoas se organizem. Municípios como Governador Valadares são particularmente suscetíveis — salienta Marcos Freitas.

Ele destaca risco de desabastecimento não só para a população na bacia do Rio Doce, mas também para a agricultura e as indústrias siderúrgica e metalúrgica, dependentes tanto do minério de ferro quanto da água que este poluiu.

— É difícil dizer agora por quanto tempo o abastecimento de água será afetado. O volume de sedimentos no rio cresceu de modo tão dramático que nem cálculos ou soluções são simples — diz Freitas.

De certo a respeito do impacto sobre a fauna, só o fato de que é grande, diz o biólogo Ricardo Freitas Filho, do Instituto Jacaré de Conservação e Manejo da Fauna Silvestre. Ele e sua equipe chegam no início de dezembro no Parque Estadual do Rio Doce ( MG), justamente para avaliar os prejuízos a um dos animais mais importantes do parque. Por estar no topo da cadeia alimentar, o jacaré é um bom indicador da saúde do ecossistema.

— O jacaré depende de peixes e outros animais. E é muito vulnerável. Esse parque é um santuário. Queremos ver, após um mês do desastre, como a fauna vai responder à lama da mineração. Se a lama chegar a afetá- lo, será ainda pior do que o imaginado — explica Ricardo Freitas Filho.

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Vale: seguro não cobre danos socioambientais

 
BRUNO ROSA 

Executivo diz que Samarco só pode voltar a operar se ganhar confiança da sociedade.

- RIO E LONDRES- O diretor- executivo de Finanças e Relações com Investidores da Vale, Luciano Siani, disse que o seguro não cobre toda a responsabilidade civil referente aos impactos socioambientais causados pelo desastre, que deixou ao menos onze mortos, desalojou centenas de famílias e prejudicou o abastecimento de água em várias cidades, com grave poluição no Rio Doce. Até o momento, o Ibama anunciou que multará a Samarco em R$ 250 milhões.

— O seguro tem um valor expressivo para a interrupção do negócio ( da Samarco) e o dano material. O seguro, em relação à responsabilidade civil, é bem inferior à multa que o Ibama já aplicou — completou Siani, lembrando que esta semana fará uma reunião com investidores da Samarco que compraram títulos emitidos pela empresa.

O executivo da Vale destacou ainda as ações para mitigar os impactos ambientais, como a distribuição de água potável, uso de máquinas para limpeza da lama e a contratação de uma empresa belga para reduzir os impactos no Rio Doce. O objetivo é diminuir a turbidez das águas, fruto da alta concentração de minério de ferro, por exemplo, que vem causando a morte de praticamente toda as espécies marinhas.

— Se não conseguirmos reerguer a comunidade e mostrar que há um futuro para o Rio Doce, não vamos conseguir da sociedade a licença de volta. Mas reativar a operação agora não é o foco. O Conselho de Administração da Samarco já aprovou medidas para o reforço adicional da barragem de Germano ( que apresentou trinca de até três metros) — disse ele.

SAMARCO: SEM PREVISÃO PARA OPERAÇÃO Em conferência com analistas, a Vale informou que ainda não tem previsão para que a Samarco volte a operar. A Vale é uma das proprietárias da mineradora, a quem pertenciam as barragens que romperam em Mariana, Minas Gerais. O diretor- executivo de Finanças e Relações com Investidores da Vale, Luciano Siani, lembrou que a empresa, assim como a BHP, a outra acionista da Samarco, “vão prestar o apoio necessário para reerguer a companhia”.

— É um momento de profunda tristeza por conta do trágico incidente, com as perdas humanas, o desabastecimento de água e o meio ambiente. A nossa preocupação é mitigar esses efeitos. Estamos comprometidos em mitigar isso — disse ele. — A Vale e a BHP vão prestar o apoio necessário para reerguer a Samarco. Mas não há responsabilidade solidária da Vale. Na esfera administrativa, não há responsabilidade ao acionista. A Samarco é uma empresa independente e vai responder. O compromisso é prover meios para que a Samarco consiga se reestabelecer se a sociedade assim aprovar. O obstáculo para que a Samarco volte a operar é mais com a sociedade do que técnico.

Siani lembrou que tanto a Vale quanto a BHP não podem ter interferência na gestão da Samarco.

— A Vale tem uma participação de 40% no segmento de pelotas; e a Samarco, outros 25%. Não compartilhamos a gestão nem temos o compartilhamento de funções e suporte. São equipes independentes. É natural um envolvimento maior daqui para frente — disse Siani.

Após o acidente de Mariana, a BHP, que também fez uma conferência com analistas, disse que está revisando a segurança de suas minas no Peru e na Colômbia.