Geração com irmão

Gabriela Walker

30/10/2015

O governo chinês anunciou ontem uma esperada mudança na estratégia de controle de natalidade. Chega ao fim a política, implantada no fim da década de 1970, que impedia os casais de ter mais de um filho. A informação foi publicada em comunicado do Partido Comunista da China (PCC), divulgado pela agência de notícias estatal Xinhua. Segundo a nota, as famílias poderão ter dois filhos, porém não há indicações sobre quando a mudança entra em vigor. 

Há anos, as consequências da restrição passaram a preocupar as autoridades. A população, atualmente de 1,36 bilhão de habitantes, está envelhecendo rapidamente, e a China pode se tornar o primeiro país a ficar "velho" antes de se desenvolver e ficar rico. Estudiosos alertam que o baixo número de nascimentos pode comprometer a oferta de mão de obra e criar um problema para a previdência social. 
Não bastasse isso, o número de homens na sociedade é muito superior ao de mulheres, uma vez que muitas famílias preferem filhos meninos, por entender que eles representam vantagens sociais e econômicas. Estima-se que dentro de cinco anos o "deficit" feminino chegue a 30 milhões, o que deve marcar o pico da chamada "crise dos solteiros". 

A reforma anunciada ontem é fruto de longos debates concluídos em um encontro de quatro dias entre membros Comitê Central do PCC. Durante meses, declarações de funcionários do governo alimentaram especulações sobre uma mudança na política de natalidade, depois de uma correção ligeira feita em 2013. Nesse ano, Pequim abriu caminho para que casais nos quais ao menos um dos cônjuges fosse filho único pudessem solicitar autorização para o segundo bebê. A resposta, no entanto, não foi a esperada. Até maio deste ano, 1,45 milhão de casais entraram com pedidos, o equivalente a 12% dos que preenchiam o requisito. 

A maior parte dos chineses reclama do alto custo de vida e alega não ter condições de criar mais um filho em uma sociedade extremamente competitiva e exigente. "Não tenho condições financeiras de criar um, imagine dois", reclamou um usuário do microblog Weibo, uma espécie de Twitter usado na China. 

Para Wilson Almeida, especialista em estudos asiáticos da Universidade Católica de Brasília e professor visitante da National Taiwan University, "a população certamente levará um tempo para assentar essa nova norma e aprender como redividir recursos para aumentar a família". Ele acrescenta, porém, que "o mais importante é evitar que projeções demográficas catastróficas se tornem reais, com a queda brusca da população em idade de trabalho". 

A estimativa para a China é de que, em 40 anos, um terço da população tenha 60 anos ou mais. Apesar de o fim da "política de um filho" seja visto como uma mudança histórica, muitos estudiosos a consideram tímida demais para reverter a tendência de desequilíbrio na pirâmide etária. "A decisão chega com 10 anos de atraso", observa Yong Cai, professor da Universidade da Carolina do Norte e especialista na questão demográfica chinesa. "Mas antes tarde do que nunca", pondera. 

Abusos 
A controversa norma do filho único fez saltar o número de abortos na China - muitos deles praticados sem o consenso da mãe -, assim como o abandono e a morte de crianças. De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde chinês, em 2013, mais de 330 milhões de abortos foram conduzidos por médicos desde a imposição da restrição, no fim da década de 1970. O terror psicológico, além dos maus-tratos e das esterilizações forçadas, contribuem para o debate interno e despertam preocupação além das fronteiras. 

Para a Anistia Internacional, a mudança não é suficiente e a intervenção em decisões familiares de ser combatida. "O Estado não tem que regulamentar quantos filhos as pessoas vão ter. Se a China leva a sério o respeito aos direitos humanos, o governo deve interromper imediatamente os controles invasivos e punitivos sobre as decisões das pessoas para planejar a família e ter filhos", defendeu ontem o pesquisador William Nee. 

Atualmente, casais que desobedecem a lei são alvo de pesadas multas, e muitos dizem ter perdido o emprego, como represália. Famílias pobres e de classe média de áreas urbanas são as mais afetadas. Não são raros os relatos sobre pais que tentam burlar o sistema apelando para esquemas de corrupção e suborno na hora de registrar um bebê.

Correio braziliense, n. 19149 , 320/10/2015. Mundo, p. 12