O Estado de São Paulo, n. 44575, 02/11/2015. Política, p. A2

Paralisia decisória e arbitragem

Diante do cenário de paralisia decisória, é instrutivo reler dois artigos clássicos sobre o tema. O primeiro, Obstáculos políticos ao crescimento econômico, é de Celso Furtado e foi apresentado em 1965 em Londres. O segundo, O dilema institucional brasileiro, é de Sérgio Abranches e data de 1988, quando a Constituinte se encontrava paralisada pela ausência de forças majoritárias capazes de definir uma linha programática para a Carta que se redigia.

Para Furtado, o federalismo atribuiu força no Senado às regiões atrasadas, deixando essa Casa Legislativa - que representa os Estados - sob controle de minorias pouco representativas e com muito poder na definição dos gastos públicos. Já as regiões desenvolvidas estão presentes nas eleições para a Câmara e para o Executivo. Na Câmara, que representa a sociedade, o problema é o populismo com base nas massas urbanas. No Executivo, o discurso vencedor traduz os anseios do Brasil moderno, onde se concentra o eleitorado. Isso conduz à disfuncionalidade na relação entre o Executivo e o Legislativo. Para se legitimar o presidente da República tem, com base na Constituição, de corresponder às expectativas do Brasil moderno, que o elegeu. Mas planos modernizantes são incompatíveis com os condicionamentos impostos pelo Congresso. “Os dois princípios de legitimação da autoridade -a subordinação ao marco constitucional e a obediência ao mandato substantivo que vem da vontade popular - entram em conflito, criando para o presidente a disjuntiva de trair seu programa ou forçar uma saída não convencional, que pode ser, até, a renúncia”, diz Furtado.

A tendência é de que o Legislativo seja integrado por oligarcas e populistas irresponsáveis em matéria fiscal. Por isso, quando decide essas matérias, o presidente é emparedado e as saídas de que dispõe, na dinâmica do presidencialismo de coalizão, ampliam a irracionalidade nos gastos. Cria-se assim um círculo vicioso pelo qual a feudalização do poder é causa da ineficiência administrativa e esta é condição para que continue a fragmentação do poder, realimentando as condições que levam à paralisia decisória. Como destravá-la? Como a ordem constitucional também foi atingida pela crise de ingovernabilidade dos anos 60, sobrou o recurso da arbitragem militar. Ela não eliminou as causas do conflito, mas rompeu o impasse ao custo de uma ditadura, diz Furtado.

Essa questão também é tratada por Abranches, para quem a inércia governamental - Sarney era o presidente - está na raiz do dilema institucional. Ele se define pela “necessidade de se encontrar um ordenamento institucional eficiente para processar as pressões derivadas de um quadro social, político e partidário heterogêneo, adquirindo bases mais sólidas para sua legitimidade, que o capacite a intervir de forma eficaz na redução das disparidades e na integração da ordem social”. A convocação da Constituinte levou à explosão de demandas reprimidas, sobrecarregando um Estado com limitação fiscal e exacerbando conflitos entre os Poderes. Isso foi agravado pela fragmentação de um sistema partidário incapaz de representar o perfil heterogêneo e desigual da sociedade, o que dificultou a formação de maiorias estáveis e levou o governo a recorrer a coalizões contraditórias. Como Furtado, Abranches lembra que a combinação de critérios partidários e regionais na formação das coalizões afeta o desempenho dos ministérios estratégicos e torna os menos estratégicos jurisdições cativas de partidos e Estados.

O presidencialismo de coalizão é um sistema de alto risco, principalmente na formação de coalizões em momentos de descontrole econômico. Uma coalizão pode ser formada com base em amplo consenso político e liquidada por divergências de orientação econômica. Assim, a superação negociada dos conflitos fica mais difícil, dada a ampliação das concessões que o presidente tem de fazer. Nessa ordem de coisas, diz Abranches, um dos cenários é aquele em que delega sua autoridade. Ele se mantém, mas o precário equilíbrio político ameaça a democracia. Outro cenário é o cesarista, incompatível com a democracia. Esse dilema leva Abranches a retomar a ideia de Furtado sobre arbitragem. O primeiro falou em arbitragem militar. O segundo lembra que é a Virtù, não a Fortuna, que propiciará um mecanismo de desbloqueio do processo decisório, preservando a democracia. Creio que ele não negaria esse papel ao STF, que atuaria no plano procedimental, e não substantivo.

Nas últimas semanas, o comandante do Exército afirmou que a crise econômica pode gerar uma crise social, afetando a estabilidade do País. “Aí nós nos preocuparemos.” E ministros do STF enquadraram o presidente da Câmara, no caso do rito do processo de impeachment. Qual das arbitragens prevalecerá? Desde 1988, o Brasil vive a normalidade constitucional, apesar dos percalços. Mas, como no choque entre as panelas de ferro e a de barro quebra a mais fraca, o que garante que, num quadro de crise econômica e social, a Constituição não seja um pedaço de papel? Vítima da arbitragem militar, Furtado escreveu um ensaio realista demais para que, à sua época, uma arbitragem judicial significasse algo. Abranches escreveu em meio às indefinições da Constituinte e antes das eleições de 1989. O que fazer para evitar o risco de arbitragem militar num período de deterioração social e política? Num momento em que muitos estão voltados para o resgate do sentido histórico da democracia, como oxigenar a vida democrática em cenários alternativos ao do modelo de presidencialismo de coalizão?

O que se extrai desses autores é que não basta equilibrar as finanças do Estado. Isso é condição necessária no curto prazo para a normalização econômica, mas não é condição suficiente para superar a crise do País. Acima de tudo, é preciso refletir sobre a regeneração do poder público. Se as instituições de direito fazem alguma diferença para as decisões de investimento e retomada do crescimento, não há que duvidar qual é a arbitragem legítima para destravar a paralisia que nos atinge.

*Professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas (GVLaw)