O globo, n. 30.057, 22/11/2015. Economia, p. 34

Nos Estados Unidos, recuperação da economia não alivia pobreza

Há 5 anos, número de pobres fica estacionado em 15% da população

“A pobreza moderna americana é uma armadilha. As crianças pobres não têm acesso à educação de qualidade, perpetuando o problema”
Steven N. Durlauf
Professor de economia

Banco Mundial estima que 38% da população latino-americana podem cair de classe social, contam A fase de ouro da redução da pobreza na América Latina pode estar com os dias contados, e este mal histórico deve voltar a crescer. O Banco Mundial (Bird) alerta que 38% da população — 241 milhões de pessoas que não são pobres nem chegaram à classe média — são vulneráveis a cair na pobreza, ou seja, a viver com menos de US$ 4 por dia. E os pobres temem ser jogados na miséria. A primeira consequência a ser sentida será a volta da informalidade no trabalho, que passará dos atuais 37% para mais da metade da população adulta do continente se nada for feito.

A América Latina e o Caribe, que formam a região mais desigual do mundo, sofrem com a queda no preço das commodities, a falta de investimentos em educação e a desaceleração chinesa. O CAF — Banco de Desenvolvimento da América Latina — calcula que uma redução de 1,5 ponto percentual no crescimento da China faça a economia local encolher 1,75 ponto percentual.

— Todos os países da região terão mais dificuldade para se recuperar — alerta Pablo Sanguinetti, diretor corporativo de Análise Econômica do CAF, para quem os governos podem atenuar estes riscos.

Os dados mostram que a pobreza na região está estagnada desde 2012. São 167 milhões de pobres, sendo 71 milhões de miseráveis. A extrema pobreza já começa a mostrar tendência de alta, inclusive no Brasil. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), a miséria por aqui subiu, e cerca de 6% dos brasileiros são miseráveis.

— No Brasil, onde esperamos que o PIB (Produto Interno Bruto) vá cair em 2015 e em 2016, o nível de pobreza deve aumentar, ainda que menos que nos anos 80, quando havia menos políticas de suporte à renda dos menos afortunados. Todavia, um possível aumento da pobreza no país seria temporário — afirma Marcello Estevão, especialista do Fundo Monetário Internacional (FMI).

‘O DESAFIO HOJE É NÃO PIORAR MUITO’

Mas Oscar Calvo-Gonzales, gerente para a área de pobreza do Bird, acredita que os problemas da região são estruturais:

— Hoje a região enfrenta condições externas difíceis, que não são transitórias e que podem durar muito tempo. Uma nova geração de programas sociais vai além da rede de segurança em tempos de crise, mas também ajuda a aumentar a produtividade e reforçar o capital humano, permitindo novos progressos na redução da pobreza.

O Brasil, o país que mais reduziu a pobreza, hoje é um dos mais ameaçados, devido à forte crise econômica e política. Tem de lidar, simultaneamente, com o empobrecimento e o problema fiscal.

— O desafio hoje é não piorar muito, enquanto há alguns anos estávamos debatendo como acelerar a queda na pobreza — sintetiza Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue. — Mas ninguém quer deixar de ser pobre temporariamente, e isso pode gerar pressão social para que as reformas, enfim, saiam do papel.

Na vizinhança da sede do Banco Central brasileiro, uma cena resume a situação do país. Ao lado do prédio que guarda US$ 370 bilhões — a enorme poupança de dólares para proteger o Brasil da crise — famílias vivem do lixo. Nos contêineres dos arredores, nada que possa ser vendido permanece muito tempo.

— Outro dia mesmo achei um monte de cuecas. O bom de gente rica é que jogam tudo limpinho e cheirosinho — conta o motorista aposentado Dirceu Lima, que não consegue mais viver só com sua aposentadoria.

‘VOLTAMOS A TER PROBLEMAS DE UMA DÉCADA ATRÁS’ Kelly dos Santos também já vive esse processo de empobrecimento. Aos 24 anos, ela levou os filhos Mateus e Cauã, de 1 e 4 anos, respectivamente, para morar na rua, em uma área central de Brasília, depois que seu companheiro perdeu o emprego e ela ficou sem o Bolsa Família, sem o Bolsa Catador (benefício local para recicladores de lixo) e sem o aluguel social. A renda da família passou de cerca de R$ 3 mil para zero.

— Aqui, a gente vive de bênção. E Deus é tão maravilhoso que ele não deixa a gente passar aperto não. Hoje, uma mulher parou e trouxe biscoito para as crianças e macarrão — diz Kelly. — Quando não tenho nada, a saída é pedir. Nós aqui só não faz (sic) é roubar e traficar, mas pedir para o bem dos meus filhos, eu faço. Para Flavio Comim, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor visitante de Cambridge, no Reino Unido, esse é um retrato de um Brasil que achou que enriqueceu, mas teve avanços bem menores que os imaginados:

— Voltamos a ter problemas, os mesmos problemas de uma década atrás. A sociedade precisa refazer um pacto, como no passado, contra a fome.

Para driblar a miséria, é preciso crescer. Segundo o FMI, 60% da redução da pobreza na América Latina podem ser atribuídos à expansão econômica, e 40%, à diminuição da desigualdade. Enquanto o Brasil amargará uma recessão de 3% este ano, a economia da região encolherá 0,3%, depois de crescer 1,3% em 2014. O Brasil ficará bem atrás da Argentina, por exemplo, que deve ter expansão, segundo o FMI, de 0,4%. Vários países têm projeção de crescimento acima de 2%, como o México (2,25%). Na Venezuela, a situação é muito mais dramática: retração de 10% este ano.

A Cepal lembra que a saída recorrente da crise é a informalidade no trabalho.

— Neste caso, o brasileiro tem a vantagem de ter o MEI (microempreendedor individual), e muitos, pelo menos, não ficam desprotegidos, sem Previdência — afirma o diretor do órgão no Brasil, Carlos Mussi.

Informalidade é a realidade do ex-farmacêutico peruano Afonso Sorano, que ganha a vida cobrando 20 centavos de sol (cerca de R$ 0,22, ou US$ 0,06) de quem quiser se pesar em sua balança portátil. Ele faz ponto em uma das saídas mais movimentadas do trem de Lima, das 10h às 20h. Sorano consegue tirar até 25 soles por dia, ou cerca de US$ 8. Aos 56 anos, não consegue mais emprego, que, segundo ele, fica para os jovens, com mais educação.

— Mas não reclamo, consigo viver bem. A sorte é que todo mundo quer emagrecer. O meu grande problema é o medo do futuro. O que será de mim se eu ficar doente e não puder trazer minha balança para cá?

Para Ideli Salvatti, secretária de Direitos de Acesso e Igualdade da Organização dos Estados Americanos (OEA), a saída é convocar a sociedade:

— Se queremos progredir na superação da pobreza, devemos fornecer soluções intersetoriais e interinstitucionais.

Aos 78 anos, a peruana Mauricia Almonacete Rosas afirma que a vida piorou. A ambulante diz que nunca viu tanta concorrência no comércio. Ela às vezes precisa recorrer aos parentes para obter 20 soles (R$ 22, ou cerca de US$ 6) para comprar balas e doces, que tenta revender nas ruas de Lima. Ganha até 6 soles por dia (R$ 7, ou US$ 1,80), quantia inferior ao limite da miséria.

— A vida só está melhorando para quem tem emprego. Quem não tem, ficou igual ou pior — diz Mauricia, que não recebe aposentadoria porque sempre trabalhou na informalidade. — O que mais me preocupa é que minha filha, que tem três filhos, não tem emprego, vive de bicos. Temo que ela termine os dias como eu. Programa social, só em época de eleição ou para quem é amigo de político.

Em Trinidad e Tobago, no Caribe, a realidade é outra. A ex-colônia britânica tem a terceira maior renda per capita das Américas, atrás de Estados Unidos e Canadá. Graças aos recursos do petróleo, até os mais pobres têm uma vida mais tranquila.

Darean Kent, de 39 anos, trabalha em um barco que faz passeios turísticos. Dispensa transporte: mora ao lado do píer. Os filhos têm escola e até bolsa na faculdade, garantida pelo Reino Unido.

— Não posso reclamar — garante Kent.

Nos Estados Unidos, recuperação da economia não alivia pobreza, O sol não nasce mais para todos na América. Os Estados Unidos estão cada vez mais desiguais e pobres. O problema começou com a crise financeira de 2008, mas a economia já se recuperou, inclusive com a geração de empregos. Mesmo assim, a pobreza, que afeta 46,7 milhões de americanos, continua na casa dos 15% da população. Desde o início dos anos 1980, logo após o segundo choque do preço do petróleo, esse patamar de pobreza não ficava tão alto por um período seguido de cinco anos.

O Censo americano mostrou que, em 2014, uma em cada cinco crianças dos Estados Unidos era pobre. Quatro estados (Novo México, Mississipi, Lousiana e o Distrito de Columbia, onde está a capital, Washington) também têm ao menos 20% de sua população abaixo da linha da pobreza. A exclusão social e o aumento da desigualdade cria problemas como tensão racial —o percentual de negros pobres é muito maior que o de brancos — e violência, em um país que nunca teve tantos milionários e cuja economia cresce mais de 3% ao ano.

Steven N. Durlauf, professor de Economia da Universidade de Wisconsin-Madison, afirma que muitos pobres estão completamente dissociados da economia americana e não sentem os benefícios de seu crescimento. Em geral, são pessoas com baixo nível de instrução, que vivem em áreas marginalizadas ou que têm histórico criminal e que ficam totalmente à margem da recente forte geração de empregos. A taxa de desocupação hoje nos EUA está em 5%, a menor desde abril de 2008, antes da crise global.

— A pobreza moderna americana é uma espécie de armadilha. As crianças pobres não conseguem desenvolver habilidades, não têm acesso à educação de qualidade, o que as impede de sair da pobreza, perpetuando o problema através das gerações — avalia.

RADICALIZAÇÃO POLÍTICA

Durlauf afirma que o debate sobre o aumento do salário mínimo no país, apesar de bem intencionado — a taxa de pobreza está quase três vezes maior que a do desemprego — pode gerar ainda mais desigualdade, em sua opinião. Ele argumenta que os pobres não têm acesso a emprego formal, mas poderão ser prejudicados pelo aumento de custo que será gerado com um eventual reajuste do piso. Ele defende um aumento do salário mínimo, mas desde que, antes, adotem-se políticas de combate à pobreza.

— Acredito que a solução passa por melhorar o investimento em educação, que garante alto retorno por dólar gasto. Em segundo lugar, políticas como ação afirmativa e políticas urbanas para a promoção da integração econômica são necessárias para evitar o isolamento de subconjuntos de população dos Estados Unidos.

Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue, acredita que a desigualdade está na pauta do dia e será tema fundamental nas eleições presidenciais. Os Estados Unidos escolhem em novembro de 2016 seu novo presidente. Segundo Shifter, a pobreza levou uma “agenda latino-americana” para os EUA.

— A forte desigualdade dos Estados Unidos hoje em dia auxilia no aumento da radicalização do país. Parte de fenômenos como o forte apoio popular de Donald Trump (précandidato republicano na corrida eleitoral) é causada pela inquietação social — analisa.

A realidade das grandes cidades americanas confirma os números. Robbin Douglas, de 58 anos, não quer sair da rua. Ele recusou proposta do governo de Washington para ganhar uma casa:

— Eles querem me dar uma casa muito longe, em um local perigoso, com drogados, onde não posso ganhar meu dinheiro. Eu sou músico, toco minha guitarra em frente ao Starbucks de Dupont Circle e vivo bem — disse ele, que mistura declarações em inglês, espanhol e um pouco em francês, algo raro para um americano.

RICOS TÊM BENEFÍCIOS FISCAIS

Douglas garante que, além de ganhar mais dinheiro e ter mais segurança, prefere a rua por causa das companhias. Vivendo assim há dois anos — ele é nascido na capital americana, afirma ter sido paraquedista na primeira guerra do Iraque e diz ter perdido toda a família aos poucos —, ele vê a população de sem-teto crescer, a imensa maioria de americanos nativos. Fome, diz, pobres nos Estados Unidos não passam:

— Aqui é cheio de igrejas que nos dão comida. Muitas pessoas que trabalham em escritórios sempre nos dão alimentos bons. Tenho uma caixa aqui só de coisa boa — afirma ele, que contou com a ajuda de uma ONG para conseguir provar danos psicológicos e obter uma pensão.

Para Marcello Estevão, vicechefe da Divisão de Estudos do Departamento das Américas do Fundo Monetário Internacional (FMI), a desigualdade de renda e a pobreza relativa nos Estados Unidos estão entre as maiores dentro do grupo das economias mais desenvolvidas do mundo e têm crescido bastante nas últimas décadas. As fortes diferenças salariais, causadas por abismos educacionais, explicam este fenômeno, em sua opinião.

— Há duas maneiras de se reduzir a desigualdade de renda e a pobreza relativa no país: reformando-se o sistema educacional para melhorar o acesso à boa educação de estudantes vindos de famílias relativamente pobres e aperfeiçoando-se o regime fiscal americano, visando a uma melhor redistribuição da renda nacional sem afetar em demasia os incentivos à produtividade — afirma Estevão, defendendo uma reforma tributária para acabar com benefícios aos mais ricos, como as compensações fiscais das hipotecas.