O globo, n. 30057, 22/11/2015. País, p. 8

Memórias de quatro ‘bispos vermelhos’ durante a ditadura

Arquivo de dom Adriano Hypólito será digitalizado; acervo mostra como religiosos combateram repressão

POR MARCELO REMIGIO

22/11/2015 9:16 / atualizado 22/11/2015 14:54

Atentado. Fusca de dom Adriano destruído por uma bomba: bispo foi encontrado pintado de vermelho em Jacarepaguá- Arquivo/23-09-1976

BRASÍLIA — Documentos inéditos que revelam a atuação, no Estado do Rio, de bispos católicos contra a ditadura militar entre os anos 1964 e 1985 serão digitalizados e disponibilizados para consulta. O material faz parte do acervo de dom Adriano Hypólito, ex-bispo de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, um dos religiosos mais críticos ao regime militar. O material, que integra o arquivo da Cúria Diocesana do município, reúne documentos oficiais que denunciaram torturas a militantes políticos em unidades do Exército; cartas trocadas entre religiosos sobre a pressão que sofriam dos governos da época; fotos e a coleção do semanário litúrgico “A Folha” — folheto para acompanhar a missa —, criado por dom Adriano. A publicação trazia a sequência da missa e, entre uma oração e outra, o bispo incluía textos sobre a política no país. (Conheça os bispos que atuaram contra a ditadura militar)

A oposição aos militares rendeu aos religiosos, dentro dos quartéis, o apelido de “bispos vermelhos” — uma alusão ao comunismo feita por agentes da ditadura. Há ainda no acervo de dom Adriano material sobre dom Waldyr Calheiros, ex-bispo de Volta Redonda; dom Clemente Isnard, ex-bispo de Nova Friburgo; e dom Mauro Morelli, ex-bispo de Duque de Caxias. Os primeiros documentos digitalizados serão disponibilizados já a partir do próximo ano. Todo o acervo será reorganizado e higienizado. O trabalho faz parte de uma parceria da Cúria de Nova Iguaçu com técnicos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

No acervo há uma troca de correspondências oficiais, de julho de 1969, entre dom Waldyr e o general de brigada Tasso Villar de Aquino, na época comandante da Divisão Blindada de Barra Mansa, em que o religioso relata a rotina de torturas a presos políticos na unidade: “É de nosso conhecimento que pessoas detidas no 1º BIB, sediado em Barra Mansa, foram severamente torturadas. Uma delas, depois de posta em liberdade, teve que se recolher a uma Casa de Saúde de recuperação psíquica. Fora torturada várias vezes a ponto de perder os sentidos”, afirmou o bispo. O militar contestou as denúncias, considerando-as ‘genéricas’.” Numa nova correspondência, dom Waldyr apontou torturados: “Quando soubemos que um operário da siderúrgica, Genival Luiz da Silva, secretário do sindicato metalúrgico, saíra da prisão do batalhão diretamente para o hospital (...), procuramos nos inteirar do caso.”

AGENTES DA REPRESSÃO INVADEM CENTRO

Religiosos contam como militares atuavam - Reprodução

Em outro documento, dom Adriano comunica ao então Cardeal do Rio, dom Eugenio Sales, a invasão ao Centro de Formação de Líderes — que hoje abriga o acervo do bispo — por agentes da ditadura. A ação aconteceu em junho de 1977 e impediu a realização de um congresso durante o qual seria redigido um manifesto contra a ditadura militar: “(...) os que invadiram as dependências do Centro não quiseram identificar-se. Tomavam posição agressiva. Procuravam informar-se de tudo (...). Armados, portando inclusive metralhadora, anotando placas dos muitos carros que vinham ao Centro. (...) (Disseram) que estavam cumprindo ordens.”

— É um material de grande valor histórico para o país. Foi dom Adriano que impulsionou o surgimento dos movimentos sociais — afirma o cientista político Paulo Baía, que conviveu com o bispo.

A luta pela democracia levou dom Adriano a ser sequestrado em 1976 por agentes da ditadura. Ele foi libertado com o corpo pintado de vermelho.

— Além do material político, há a produção de dom Adriano na literatura e na música. Ele era muito amigo do escritor Manuel Bandeira — acrescenta o diretor do acervo, Antonio Lacerda.