Título: Usar sem destruir
Autor: Mckenna, Dennis; Ruas, Cibele
Fonte: Correio Braziliense, 26/09/2011, Ciência, p. 16

O botânico norte-americano defende a exploração sustentável da Amazônia, principalmente para o desenvolvimento de tratamentos médicos

West Lafayette (EUA) ¿ O cientista Dennis McKenna já perdeu as contas de quantas vezes foi à Amazônia, mas garante que a maior floresta tropical do mundo continua a ser um grande mistério para ele ¿ e também para a humanidade. Segundo o norte-americano, um dos maiores especialistas mundiais em etnofarmacologia (estudo interdisciplinar de substâncias bioativas usadas pelos povos indígenas), ainda há muito a ser descoberto na imensa área verde que ele visitou pela primeira vez há 40 anos.

A grande preocupação de McKenna ¿ doutor em botânica pela Universitdade de British Columbia e com pós-doutorado em farmacologia pela Universidade de Stanford ¿ é que o desmatamento impeça a exploração científica todo o potencial da biodiversidade amazônica. Por isso, ele é um árduo defensor de políticas que estimulem o uso sustentável da região. "A floresta oferece muitas coisas que podem ser simplesmente colhidas, sem que seja necessário derrubar uma só árvore", diz.

O especialista está convencido também de que é necessário intermediar um acordo entre os governos dos países onde a Amazônia se localiza e a indústria farmacêutica, para que a busca por novos medicamentos a partir da floresta seja fértil e beneficie a todos. Esse papel, considera, poderia ser exercido por um órgão como a Organização das Nações Unidas (ONU). O processo, ressalta, não poderia ignorar os povos tradicionais, que possuem muita informação sobre as espécies de plantas e animais tropicais. "É necessário encontrar formas éticas de envolver os habitantes locais na exploração das riquezas da região. Seus conhecimentos sobre a floresta e o fato de terem convivido com ela por tanto tempo devem ser reconhecidos, apreciados e recompensados", defende.

Atualmente, o pesquisador divide seu tempo entre Minnesota, nos Estados Unidos, e Iquitos, no Peru, onde desenvolve, na Universidade Nacional da Amazônia Peruana, um projeto que busca documentar todas as plantas do herbário local e disponibilizar mais tarde os dados pela internet. Foi do país sul-americano que McKenna falou ao Correio. Leia a seguir os principais trechos da entrevista, na qual ele abordou ainda temas como as queimadas no Brasil e o impacto do turismo sobre a cultura da ayahuasca no Peru.

LUGAR MISTERIOSO "(A Amazônia) é um lugar tão diferente que, de certa forma, é como uma realidade paralela. É como um microcosmo da crise ambiental que abrange todo o planeta. Até as pessoas (que moram na região amazônica) não têm uma noção precisa sobre a floresta. Elas a encaram como estranha, alheia à vida de muitos. Na verdade, ela é um grande mistério."

EXPLORAÇÃO SUSTENTÁVEL "Temos que pensar em termos das possibilidades de exploração sustentável, pois não há como tornar a Amazônia uma reserva, isolando-a para protegê-la. Ela é muito grande, rica e importante. É preciso criar meios de explorá-la de forma correta, sem desgastá-la, preservando-a para as gerações futuras. As atividades preservacionistas deveriam receber incentivos fiscais e econômicos. A floresta oferece muitas coisas que podem ser simplesmente colhidas, sem que seja necessário derrubar uma só árvore. Pelo contrário, nesses casos, é preciso zelar pela integridade da floresta. Frutas, fibras, castanhas, resinas, fragrâncias, ingredientes para cosméticos, elementos fitoterápicos: esse me parece o caminho para preservar a Amazônia."

VALOR DA FLORESTA "Ainda há muito mais a ser descoberto na Amazônia. Estima-se que haja US$ 300 bilhões só em remédios a serem desenvolvidos a partir da flora local. Também há uma incalculável riqueza em termos das populações locais e dos povos indígenas, do conhecimento que eles acumularam durante milênios sobre esse tesouro que é a floresta equatorial. São eles que extraem dela seus alimentos, remédios, literalmente tudo de que necessitam para viver. Eles aprenderam como usar os recursos naturais de forma sustentável."

DIVISÃO DOS LUCROS "De um lado há os países em desenvolvimento, que possuem a riqueza que acompanha a biodiversidade, incluindo o conhecimento dos nativos. Eles têm recursos valiosos, que podem ser comercializados. Pode-se questionar se é lícito ou ético que se detenha a posse do que é da natureza, mas pelo menos esses países têm certo controle sobre esses recursos. Do outro, há a indústria farmacêutica, que quer ter acesso a esses produtos, mas não quer pagar por esse privilégio, ou não quer dividir seus lucros com os governos ou as populações nativas. É necessário encontrar formas éticas de envolver os habitantes locais na exploração das riquezas da região. Seus conhecimentos sobre a floresta e o fato de terem convivido com ela por tanto tempo devem ser reconhecidos, apreciados e recompensados."

INTERMEDIAÇÃO DA ONU "Os governos têm endurecido, talvez excessivamente, e têm feito exigências às vezes irreais (para a exploração da biodiversidade). Por isso está ocorrendo uma desaceleração do processo de pesquisa de novos medicamentos. Se as exigências forem astronômicas, será ruim para os governos e para a indústria farmacêutica. Não se deve desestimular a indústria farmobiotecnológica, pois ela optará por investir apenas na pesquisa de novos compostos sintetizados em laboratório. Uma organização não governamental, como a ONU, poderia intermediar as negociações entre as partes, de modo que possam surgir acordos que beneficiem todos os envolvidos, porque, se os governos e os nativos não tiverem incentivo para permitir o acesso às pesquisas in loco, nada poderá acontecer. E é preciso que esses acordos sejam, sobretudo, éticos."

BRASIL "O grande interesse do Brasil pelos biocombustíveis fez que a soja aparecesse na Amazônia. Centenas de milhares de hectares de floresta estão sendo desmatados para dar lugar à soja, entre outras culturas destinadas à produção de combustíveis. O desmatamento de áreas enormes ameaça a floresta e também contribui para a mudança climática do planeta. Várias estimativas indicam que de 20% a 30% dos fatores humanos responsáveis pelo aquecimento global devem-se ao desmatamento e outras práticas impróprias do uso da terra. Se as queimadas cessassem, se parássemos de queimar a floresta poderíamos desacelerar o aquecimento global. Seria simples, mas é muito mais difícil do que se possa imaginar."

AYAHUASCA E TURISMO "O ecoturismo instrui, divulga a região, faz nascer uma nova consciência a respeito da natureza. É um processo lento, mas me parece o melhor caminho. No entanto, ele tem um duplo impacto: traz dinheiro para a região, mas também provoca mudanças culturais. A melhor ilustração é o fenômeno do turismo voltado para o ayahuasca. Iquitos é o epicentro do turismo do ayahuasca. Todo ano, centenas de pessoas da Europa, dos Estados Unidos, da Austrália, do mundo todo, vêm para cá para experimentar o daime. Isso teve um profundo impacto no modo como o ayahuasca era usado aqui. Costumava ser um remédio tradicional, havia uns poucos curandeiros que o usavam na comunidade local. Não era nada excepcional, não havia tanto dinheiro envolvido, ninguém lhe dava muita importância. Mas quando os turistas estrangeiros começaram a chegar, as pessoas se deram conta de que poderiam obter lucro com o fermentado. De repente, todo mundo se intitulou ayahuasqueiro, foram construídos retiros no meio da selva, há passeios, conferências, tudo voltado para o daime. Se a tradição do ayahuasca foi mantida viva, também foi radicalmente transformada. Tornou-se um comércio, e a natureza dos rituais foi modificada para acomodar as expectativas dos estrangeiros. O ayahuasca se tornou um fenômeno global, uma mercadoria. O ayahuasca é de propriedade intelectual da população da Amazônia. É difícil pensar como se pode ter um relacionamento com ele sem destruir sua tradição."