O Estado de São Paulo, n. 44610, 07/12/2015. Espaço aberto, p. A2

Delação premiada – bem público e interesse privado

FRANCISCO FERRAZ*

A política é uma atividade muito complexa e complicada, uma área de que os mais prudentes se aproximam com cuidado, humildade, muito estudo e uma disciplina rigorosa, destinada a conter a arrogância intelectual, a precipitação e a confusão entre valores pessoais e a realidade. Tomemos um exemplo da realidade política brasileira atual: o episódio envolvendo o senador Delcídio Amaral e que o levou à prisão.

Se alguém declarasse que com uma única ação política teria o poder de provocar as a seguir listadas consequências políticas, seria por todos considerado um inconsequente e não mereceria nenhuma atenção: 1) levar à prisão o senador Delcídio e o empresário André Esteves; 2) constranger o STF e alguns de seus ministros; 3) revigorar a legitimidade do juiz Sergio Moro e a equipe da PF e MP e a presunção de veracidade das acusações já feitas; 4) remover do centro da cena política o deputado Eduardo Cunha; 5) reforçar as ameaças que pairam sobre Lula e conseguir calá-lo; e 6) constranger o vice-presidente da República.

 

Embora nem mesmo o autor da gravação pudesse ter previsto o conteúdo da conversa em todos os detalhes, a reunião provocou todas as consequências acima, do mais alto interesse público, e outras que me dispenso de acrescentar. Como é possível que isso tenha sucedido? Praticamente ninguém se faz essa pergunta. Se forçarmos uma resposta, ao acaso será tributada a ocorrência. Acaso mencionado de forma vulgar (azar de Delcídio) ou acaso referido de forma sofisticada (a inter-relação de múltiplos atores e variáveis).

 

Não se faz essa pergunta porque estamos acostumados no Brasil a encarar a política de outra forma. No nosso discurso político, resultados positivos para a sociedade são consequências sempre de intenções virtuosas em relação à sociedade. Essa concepção leva a política – discussão, deliberação, decisão – para o plano das intenções, subalternizando o plano dos resultados. Decide-se em quem votar pela escolha entre intenções declaradas. Decide-se o que fazer sem confrontar com os meios materiais de realização.

 

Curiosamente, entretanto, esse não é o caso das consequências “virtuosas” da reunião com o senador Delcídio. Ali cada um dos presentes participava com seu interesse individual. Nenhum tinha como motivação o interesse público. Apesar disso, aquela reunião produziu resultados fortemente favoráveis ao interesse público e muito positivos para a sociedade, provocados por indivíduos dominados por interesses pessoais, egoístas, imorais e ilegais.

Essa constatação implica, então, reconhecer a colisão frontal entre a concepção dominante de que resultados virtuosos decorrem de intenções virtuosas e a realidade de que resultados altamente virtuosos e positivos foram produzidos por intenções viciadas, imorais e ilegais. Não se trata de um confronto menor. A constatação da dependência dos resultados da natureza ética da intenção abriga nossa propensão a resolver litígios pelo recurso ao Judiciário, a visão da superioridade ética do Judiciário, da sua capacidade para encontrar “a” justa solução dos litígios e nosso desprezo por soluções negociadas, sempre eticamente inferiores à revelação do direito.

Mas se não podemos atribuir às boas intenções aqueles resultados positivos para a democracia e se não nos satisfaz atribuí-los ao acaso, como, então, explicar a sua causa?

Devemos olhar essa ocorrência por outra lógica. Afinal, há que lidar com um aspecto eticamente perturbador nesse caso: foram ações moralmente condenáveis que provocaram resultados moralmente positivos para o País, como as acima referidas. Devemos tais resultados, assim como tantos outros da Operação Lava Jato, a um fator crucial e decisivo: o instituto da delação premiada.

Objetivamente, esses resultados da Lava Jato, assim como todos os demais que, por zelo e competência, o juiz Sergio Moro e sua equipe produziram, ao desvelar o escândalo amazônico do petrolão, devem-se ao instituto da delação premiada.

Sem a delação premiada (um prêmio dado ao criminoso que colabora com a Justiça, uma negociação entre o interesse público e o interesse individual do acusado), muito pouco do que hoje sabemos sobre a dimensão da corrupção brasileira teria chegado ao nosso conhecimento e se tornado uma realidade política, econômica, ética e judiciária.

A delação premiada opera ao contrário daquela concepção da nossa cultura política: intenções virtuosas, resultados benéficos. Na delação a relação é: intenções egoístas, resultados benéficos. Nela a alquimia política é diferente do senso comum: são interesses individuais, egoístas e sem preocupação com o interesse coletivo que, na sua transição da esfera individual para a coletiva, resultam em benefícios públicos.

Maquiavel foi o primeiro a revelar essa lógica quando detalha como o príncipe liberal, ao gastar mais do que o cofre da República tem, se vê obrigado a tornar-se um príncipe mesquinho e autoritário para permanecer no poder, ao criar impostos, cortar despesas e saquear seus súditos. Por outro lado, o príncipe mesquinho, zeloso nos gastos, firme ao evitar pressões, por não gerar expectativas que não pode satisfazer, terá condições de em algum momento gastar em favor do povo, sem ameaçar seu reino.

A fórmula de Maquiavel sobre a peculiar alquimia das virtudes próprias da vida privada quando transferidas para a vida pública não é muito diferente da fórmula de Mandeville na sua Fábula das Abelhas: Vícios Privados Benefícios Públicos, tampouco da lógica do capitalismo desde Adam Smith, em que o interesse e o egoísmo individual racionalmente buscado (vício privado) pela ação das leis do mercado resulta no enriquecimento da nação (benefício coletivo).

Qualquer relação entre a situação da presidente Dilma e do modo de governo do PT com essa análise de Maquiavel é intencional e exemplo evidente do conselho político que o grande florentino deixou e chega ao Brasil com 502 anos de atraso.

* FRANCISCO FERRAZ É PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA, EX-REITOR DA UFRGS, É DIRETOR DO SITE ‘POLÍTICA PARAPOLÍTICOS.COM.BR’