No fim das contas, decepção

Vicente Nunes, Rodolfo Costa, Mariana Areias 

07/01/2016

A tradicional classe média está cortando um dobrado para fechar as contas do mês. “Cada dia é um tormento. Já deixei de sonhar com o futuro faz tempo”, diz a aposentada Suely Assunção, 63 anos. Com renda mensal de R$ 3,5 mil, ela está sendo obrigada a escolher, todos os meses, as dívidas que vai pagar. “Tudo, não cabe no meu orçamento”, ressalta. Até o meio do ano passado, Suely ainda conseguia evitar atrasos nas faturas de cartão de crédito e na mensalidade da escola do neto Felipe, 7. Complementava a renda com empréstimos consignados. Mas as margens para os financiamentos se esgotaram. “A ilusão de que tudo estava fácil acabou. No lugar dela, sobrou decepção”, afirma.

O aperto da classe média não vem de hoje, destaca o economista João Luís Mascolo, da escola de negócios Insper. A situação, no entanto, se agravou muito nos últimos quatro anos, quando a inflação disparou e o Produto Interno Bruto (PIB) entrou em processo de encolhimento.“ Nenhuma camada da população depende tanto do desempenho do PIB quanto a classe média tradicional”, ressalta. Com a recessão econômica se aprofundando— o Brasil deverá encolher 8% entre 2015 e 2017, a maior retração contínua desde 1901, segundo o banco Credit Suisse— , o desemprego voltou com tudo. A perda de renda levou as famílias a fazer em um ajuste dramático nas despesas.

Mesmo aqueles que têm emprego garantido, como a servidora pública Mariana Maia, 31, estão sendo obrigados a apertar o cinto. E nada de fazer planos de longo prazo. “Não vejo melhora da economia tão cedo. Portanto, temos que nos limitar a viver o presente”, diz ela, que, durante toda a vida, sempre estudou em escola particular. Diante, porém, do agravamento da crise, foi obrigada a transferir o filho mais velho, Lucas, 5, do sistema privado de ensino para o público. Livrou-se de uma mensalidade de R$ 2 mil. “O ano de 2015 foi muito difícil. Enfrentamos dificuldades financeiras devido a aumentos consideráveis em contas básicas, como luz, supermercado e gasolina”, frisa.

Mariana afirma que, mesmo apreensiva com a adaptação do filho na escola pública, era o melhor a fazer. Além do alívio no orçamento, ela acredita que o novo local de ensino servirá para Lucas conhecer a realidade do país e saber as diferenças que a vida tem. O mesmo destino terá Matheus, 2, o caçula da servidora. “Por enquanto, ele está na creche que o meu trabalho oferece, mas, a partir de 2017, será matriculado em uma escola pública”, afirma. Para ela, o pior da mudança será enfrentar as constantes greves de professores, que obrigam os alunos a ficarem longos períodos sem aula.

Privações

Na avaliação de Fábio Bentes, economista-sênior da Confederação Nacional do Comércio (CNC), com o desemprego aumentando— pelo menos 2 milhões de trabalhadores serão demitidos em 2016—só restará às famílias de classe média abrirem mão de conquistas importantes para se adequarem à dura realidade do país. “Além de trocarem a escola particular pela pública, muitas famílias terão que suspender o plano de saúde, devolver o apartamento dos sonhos e entregar para os bancos o carro comprado com tanto sacrifício”, ressalta. “O país ficou mais pobre. Não há escapatória”, emenda.

O ex-consultor de vendas Rafael Alves, 24, não tem qualquer dúvidas disso. Em novembro de 2015, ele perdeu o emprego, pois a empresa na qual trabalhava foi à falência. “Foi uma surpresa terrível para mim, pois tinha feito dívidas e programado um fim de ano melhor para a minha família”, frisa. Ele relata que o salário de R$ 3 mil dava para manter a família sem luxos, mas sem dificuldades. “Tudo se agravou porque a minha mulher, Daniela, 22, também perdeu o emprego no fim do ano passado. Estou desesperado, com as contas atrasadas se acumulando. Não sei por onde começar. Nem o carro uso mais, porque não tenho dinheiro para encher o tanque, nem para trocar o pneu que está furado”, completa.

A maior preocupação de Rafael é com o futuro da filha, Maria Luísa, 2. “Para um pai, é inaceitável não ter condições de planejar o futuro dos filhos. Tomara que as dificuldades que estamos vivendo sejam superadas rapidamente”, diz. “A crise não pode nos privar de uma vida melhor”, complementa.

Sonho da casa própria se transforma em pesadelo

Como uma avalanche, a crise econômica corroeu o orçamento das famílias e devastou sonhos, sobretudo os da servidora pública Naiane Cunha, 30 anos. Ela não teve escolha: sem dinheiro para bancar as prestações, foi obrigada a devolver o apartamento comprado na planta em Águas Claras, pelo qual havia desembolsado R$ 50 mil ao longo de três anos. “O que era para ser motivo de alegria se transformou em um pesadelo. Coma inflação em alta, as mensalidades cobradas pela construtora começaram a subir muito. Ou devolvia o imóvel ou me tornaria inadimplente”, diz.

Naiane conta que insistiu o quanto pôde. “Fiz um empréstimo no banco para pagar as chaves, mas meu orçamento já estava no limite. Não consegui financiar o saldo restante. Meu pedido foi recusado”, afirma. Ela até tentou um acordo com a construtora na ânsia de ver o sonho da casa própria concretizado. Mas se assustou com o valor das prestações, que começava em R$ 1,6 mil. “Além disso, teria que pagar R$ 20 mil referentes às parcelas intermediárias. Então, não tive outra escolha e pedi o distrato”, explica. A servidora reconhece que foi um baque. “Tudo mudou rapidamente. A economia vinha bem e minha condição de vida era boa. Agora, não sei mais o que esperar do dia de amanhã”, acrescenta.

Para Eduardo Aroeira, vice- presidente da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário do Distrito Federal (Ademi-DF), a devolução de imóveis se tornou frequente, devido ao elevado nível de endividamento das famílias. “O volume de distratos se tornou uma grande preocupação para as empresas”, afirma. “Muitas unidades que foram compradas na planta em 2010, 2011 e 2012 e foram entregues nos últimos dois anos, em meio ao agravamento da recessão, estão voltando para as empresas por incapacidade de pagamento dos mutuários”, ressalta. Esse quadro só será revertido à medida que a economia for se recuperando e os empregos, voltando.

Preocupação

Na opinião de Fábio Bentes, economista sênior da Confederação Nacional do Comércio (CNC), os brasileiros tiveram o orçamento destroçado pela forte alta das tarifas públicas, que subiram, em 2015, 18% em média. “Trata-se de um imposto monstruoso. Não há como fugir. A situação se complica porque o mercado de trabalho está ruim e vai piorar mais”, afirma. Pelos cálculos dele, depois de cravar quase 11% em 2015, a inflação ficará entre 7% e 8% em 2016. “É por isso que todas as projeções mostram o agravamento da recessão e o aumento das demissões”, emenda. Para Bentes, o tormento da classe média tradicional, que sustenta o consumo no país, está muito longe de acabar. “É duro dizer isso. Mas é a realidade.”

Levará tempo para que o país sai do atoleiro

O músico Thallis Henrique Silva, 29 anos, está no sufoco. Sem acompanhamento médico, os exercícios vocais se tornaram as únicas medidas preventivas contra eventuais problemas na garganta que lhe garante o sustento. Desde que perdeu o plano de saúde, no ano passado, deixou de fazer exames de audiometria e de ir a consultas como fonoaudiólogo e o otorrinolaringologista. “Se eu fosse pagar tudo por conta própria, não sobraria dinheiro para nada”, lamenta ele, que toma todo o cuidado possível para não pegar sequer um resfriado. “É terrível quando fico doente. Meu trabalho exige que eu esteja com saúde e voz boa. Se fico acamado, perco a oportunidade de estar no palco. É menos dinheiro que entra na minha conta”, diz.

Thallis faz parte do pelotão de mais de 500 mil brasileiros que foram obrigados a abrir mão do convênio médico em 2015 por incapacidade de pagamento. “Infelizmente, essas são as vítimas das escolhas erradas do governo nos últimos quatro anos”, afirma a economista Vitória Saddi, diretora da SM Management Futures. No entender dela, que trabalhou com Nouriel Roubini, o único analista a prever a crise de 2008, o Brasil pecou por brincar com a inflação, que tirou a previsibilidade da economia, prejudicando as empresas e as famílias.

“Vai levar tempo para que o país dê a volta por cima. Ainda veremos muitos estragos antes disso acontecer”, destaca. O músico conta que os planos de saúde dele e da irmã eram bancados pelo pai, que se aposentou. “Com o aumento de 70% nas faturas, os R$ 2,5 mil disponíveis passaram a ser suficientes apenas para bancar os convênios dos meus pais. Tive que me conformar”, relata. Para ele, o mais preocupante é que o quadro econômico que levou o Brasil para o buraco, comprometendo o futuro de muitas pessoas, não mudará tão cedo.

 

Correio braziliense, n. 19218, 07/01/2016. Economia, p. 9