Correio braziliense, n. 19215, 04/01/2016. Ciência, p. 14
 
Potencial brasileiro
 
Vilhena Soares

Plástico, papel, vidro e orgânicos. Essas são as categorias usadas para separar o lixo, etapa inicial para reciclá-lo. A transformação de restos em energia elétrica e combustíveis, porém, exige a realização de muitas outras ações, algumas envolvendo conhecimentos rebuscados. Pesquisadores brasileiros e empresas têm se dedicado a desenvolver tecnologias que transformem resíduos sólidos de maneira economicamente viável. Os cientistas, aos poucos, conquistam resultados importantes, que já ajudam o meio ambiente e servem de exemplo e esperança para um uso ambientalmente mais correto dos rejeitos em todo o país.

A necessidade de novas fontes de energia é real. A estimativa é de que, em 2020, a demanda global aumente em 35%. Por isso, alternativas que alimentem a produção econômica e, ao mesmo tempo, preservem o meio ambiente, são mais que bem-vindas. Uma das possibilidades mais promissoras é o aproveitamento do biogás — gás produzido a partir da decomposição de resíduos orgânicos por bactérias.

O método já é explorado pela empresa internacional GE Power. A companhia criou motores que conseguem transformar o biogás, gerado nos aterros sanitários, e transformá-lo em energia elétrica. “A utilização do gás de aterro para a geração de energia é uma alternativa que vem sendo utilizada com sucesso em diferentes regiões do mundo e que tem enorme potencial no Brasil”, explica Rickard Schafer, líder de Vendas para o Brasil.

A tecnologia tem sido usada com sucesso em algumas cidades do país. “O projeto em Belo Horizonte tem gerado resultados positivos e está contribuindo com o fornecimento de energia limpa e renovável para a população local. Hoje, temos máquinas instaladas também em aterros em Salvador e em Minas do Leão (RS). Os números que temos são expressivos, mas ainda podem ser ampliados em grande escala se considerarmos que 45 milhões de toneladas de lixo são dispostas anualmente em aterros sanitários no Brasil, o que equivale a um potencial de geração acima de 1.300 megawatts (mW)”, destaca.

Schafer acredita que estratégias voltadas para a transformação do lixo em energia no país precisam ser ampliadas. “Números mostram que o país tem potencial para gerar energia a partir de resíduos sólidos e que podemos avançar nessa questão se agirmos em duas frentes: transformando lixões em aterros sanitários, conforme previsto na Política Nacional de Resíduos Sólidos, e equipando os aterros com tecnologias para geração de energia, criando uma alternativa ambientalmente limpa e sustentável para descartar o lixo gerado e levar mais segurança à rede elétrica”, avalia.

Gaseificação
Outra forma de transformar resíduos sólidos em energia é a gaseificação. A tecnologia, utilizada em outros países, foi a estratégia pensada por Luciano Infiesta, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), para reutilizar o lixo de cidades paulistanas e transformá-lo em energia. Ele realizou um projeto em parceria com a empresa Carbogás, onde trabalha atualmente. O lixo recolhido nos municípios é processado e transformado em gás por meio de reatores que realizam várias reações termoquímicas. O produto gerado pode ser usado de formas diversas na área energética. “O produto final é um gás combustível, similar ao gás natural. Com ele, é possível, por meio de sua queima, gerar vapor e eletricidade ou substituir o gás natural”, explica Infiesta.

O objetivo do pesquisador e da empresa é montar um consórcio de 22 municípios do Vale do Paranapanema, no interior de São Paulo, para que todo o lixo produzido pelas cidades possa ser gaseificado até o fim deste ano. “O projeto foi iniciado em 2014, mas, atualmente, estamos paralisados, devido à atual crise. Ele já conta com a área de 100 mil metros quadrados, licenças de instalação e galpão de matéria-prima. O modelo desenhado nesse projeto pode ser replicado em qualquer município do Brasil, o que, certamente, acontecerá após a inauguração”, prevê.

Infiesta acredita que o incentivo a projetos como o dele poderia ser o caminho para o Brasil conseguir manter o meio ambiente e ainda assim produzir energia. “O Brasil precisa de investimentos em qualquer tipo de energia alternativa. Nesse caso, ele cumpriria uma dupla função, tanto para atendimento de energia elétrica, quanto para o atendimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Os passivos ambientais gerados pela má deposição dos resíduos seriam sanados com essa tecnologia”, acredita.

Frase
"Números mostram que o país tem potencial para gerar energia a partir de resíduos sólidos e que podemos avançar nessa questão”

Rickard Schafer, especialista da GE Power

Três perguntas para
Cícero Bley Júnior, superintendente de Energias Renováveis da Itaipu Binacional

Quais opções são mais interessantes para o país transformar lixo em energia?
O Brasil conhece e domina todas as tecnologias para transformação de resíduos em biogás. O que falta são políticas públicas que confiram segurança jurídica, normativa, contratual, comercial e financeira para que investidores se sintam estimulados a aplicar capital de investimentos em processos com biogás. Ele é um combustível renovável e não emissor de gases do efeito estufa. Se for bem aplicado, garante a geração de energia elétrica, térmica e automotiva. Com ele, pode-se substituir o gás natural e o óleo combustível para gerar eletricidade; a lenha, para produção de vapor e calor; o diesel, para operações com caminhões, tratores e outros equipamentos pesados; e a gasolina, nos transportes leves e de pessoal.

O que falta, portanto, ao biogás é mais investimento?
Sim. O biogás está presente no Brasil há mais de 50 anos, porém sempre ao sabor de iniciativas de mercado. Os planejadores do setor de energia sempre o consideraram desinteressante porque é típico de operações em geração distribuída e descentralizada. Isso pressupõe que seja mais produzido em pequena escala, o que aparentemente não interessa ao setor como negócio, monopolista. Assim, faltam regras oficiais claras para o biogás. Não é possível deixá-lo ao sabor do mercado.

Pesquisadores brasileiros têm se dedicado a desenvolver essas novas técnicas?
A pesquisa em biogás no Brasil pode ir muito além do que temos na atualidade. O clima tropical e a biodiversidade brasileiros oferecem condições competitivas para a biodigestão anaeróbica, que degrada os resíduos orgânicos e produz biogás. E calor é a principal condição para produzi-lo. Temos que evitar copiar modelos tecnológicos desenvolvidos para condições climáticas frias. A Associação Brasileira de Biogás e Biometano está finalizando uma proposta de Programa Nacional do Biogás e do Biometano a ser entregue ao Ministério de Minas e Energia. Nessa proposta, constam as principais medidas que a sociedade julga necessárias para a consolidação do biogás como fonte renovável e estratégica para conferir sustentabilidade ao agronegócio e ao saneamento básico, setores importantes da vida nacional.