O globo, n. 30114, 18/01/2016. Opinião, p. 12
Fora de foco
A Constituição garante atendimento gratuito na rede do Sistema Único de Saúde — em tese, uma conquista, assegurada pelo princípio da restauração da democracia pós-64 que perpassa a Carta. Mas, entre a boa intenção de oferecer acesso universal a serviços de saúde, por suposto com qualidade na assistência médica, e a realidade de um Estado minado por drenos assistencialistas e corporativistas, a distância é enorme.
Ela se mede, por exemplo, na degradação crônica da prestação de serviços, colapsos que paralisam hospitais e clínicas públicas, filas intermináveis em ambulatórios e, quase sem exceção nas unidades sob administração direta do poder público, virtual falência da rede do SUS. Num sistema em que a eficiência é engolida por gestão ineficiente, casos de corrupção, surtos de corporativismo e outros males da burocracia estatal, crises como a que consome atualmente a rede oficial de Saúde fluminense são a norma no país.
O Rio de Janeiro talvez seja, por ora, o exemplo extremo de falência do sistema de saúde pública, nos moldes em que ele se assenta, mas por certo não é o único estado a enfrentar o fantasma do colapso devido à crise fiscal. No caso fluminense, às deficiências estruturais da rede de atendimento público somam-se aspectos específicos. O novo secretário de Saúde, Luiz Antônio de Souza Teixeira Júnior, observa, por exemplo, que a grade de atendimento do Rio é uma das melhores do Brasil, mas foi formada num momento de bonança financeira. Por sua vez, os governos fluminenses não tiveram visão estratégica na questão da dependência do estado às receitas do petróleo.
Desde o fim de 2014, eram evidentes os sinais externos de queda no preço da commodity. À redução da entrada de royalties somaram-se a tempestade na Petrobras e a crise econômica do país. Houve também boa-fé, ou inocência, quando se acreditou no canto da sereia, entoado pelo lulopetismo, do pré-sal como futuro dínamo para novo ciclo de gordas receitas decorrentes da exploração dessas reservas de óleo. Tudo considerado, formou-se receita certa para alimentar a atual debacle na saúde pública.
Por hipocrisia política ou ideológica, estes aspectos não têm sido considerados por críticos que, diante do colapso fluminense, aproveitam para jogar na conta das Organizações Sociais uma suposta responsabilidade pelo caos na Saúde. Além disso, leva combustível para tais críticas o episódio tópico dos “malfeitos” da Biotech, cujos mandatários foram apanhados em atos criminosos, contra princípios administrativos da empresa, dona de um contrato de gestão com o estado.
A corrupção da Biotech precisa ser tratado no âmbito que lhe cabe — o de ocorrência policial. Contra esse desvio ético, há inúmeros casos de gestão bem sucedida em todo o país, e não só na Saúde, pela flexibilização das normas de administração de serviços públicos a partir desse novo tipo de arranjo gerencial. A crise no setor é aguda, mas precisa ser enfrentada a partir das reais causas que a ela levaram. Desviar o foco da questão atende apenas a interesses que passam ao largo da solução para esse grave problema.
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Modelo falido
Paulo Pinheiro
Sou contrário ao modelo de gestão da saúde pública por organizações sociais, pois já está demonstrado que, na prática, ele é um modelo patrimonialista, onde bens públicos e privados se confundem ilegalmente. Após um longo trabalho de fiscalização dos contratos de gestão com OS, baseado em inspeções realizadas pelo Tribunal de Contas do Município, podemos elencar uma série de irregularidades.
Até o momento, cinco OS foram desqualificadas e tiveram seus contratos rescindidos por irregularidades (Isas, Biotech, Ciap, Global e Marca). Os diretores de quatro delas foram presos em operações comandadas pelos Ministérios Públicos do Rio de Janeiro, Paraná, São Paulo e Rio Grande do Norte. Entretanto, os problemas não se limitam a essas entidades. O TCM identificou irregularidades cometidas por todas as OS contratadas e já constatou um potencial dano financeiro de R$ 78 milhões ao erário municipal em apenas um ano de vigência de 12 dos mais de 50 contratos já celebrados.
As inspeções do TCM mais que comprovam a antieconomicidade do modelo. A maioria das OS contrata serviços continuados sem qualquer processo seletivo, ferindo o princípio da impessoalidade. A consequência é o sobrepreço em diversos serviços prestados: 58% na limpeza e 51% no fornecimento de gazes medicinais das UPAs Cidade de Deus e Vila Kennedy; 44% na vigilância; 77% na limpeza e 54% nas refeições da Maternidade Maria Amélia; 66% no valor das aquisições de medicamentos do CER Leblon, e inúmeros outros que poderiam ser citados aqui. Na Maternidade Maria Amélia, a OS responsável firmou nove contratos emergenciais de assessoria técnica com consultorias cujos sócios eram parentes de gestores da própria OS. A OS do Hospital Evandro Freire, na Ilha do Governador, efetuou pagamentos indevidos referentes a diversos serviços quando o Hospital sequer havia sido inaugurado. Na recente prisão dos responsáveis pela OS gestora dos hospitais Pedro II e Acari, na denominada Operação Ilha Fiscal, empreendida pelo MPE, ficou demonstrado mais um desvio de R$ 48 milhões. Infelizmente, esta é apenas uma pequena amostra, mas o suficiente para comprovar a inviabilidade do modelo de gestão adotado no Rio de Janeiro, que já abrange 70% do orçamento da Secretaria Estadual de Saúde e 40% da SMS. Como vereador, solicitei auditoria do TCM em 36 contratos com OS e aprovei a Lei de Transparência das OS, vetada pelo prefeito.
Apesar de lutar pela fiscalização das OS, acredito que apenas a mudança do modelo de gestão — com profissionais concursados e valorizados por um plano de cargos — poderia garantir uma saúde de qualidade para a população. Não se trata de uma defesa ideológica, mas sim de uma opinião técnica baseada na analise dos números aqui apresentados e na minha experiência como médico e gestor do Hospital Miguel Couto durante oito anos. Sabemos que verbas existem, e alternativas também.