Correio braziliense, n. 19.242, 31/01/2016. Política, p. 3

Benefício à margem da LDO

ORÇAMENTO » Interpretação do CNMP dribla regras da lei para garantir o pagamento de auxílio-moradia para procuradores e juízes

Por: JULIA CHAIB E EDUARDO MILITÃO

 

Apesar de impor critérios mais rígidos contra o pagamento generalizado do auxílio-moradia de R$ 4.377 por mês, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) não será aplicada a procuradores do Ministério Público e magistrados. Na última semana, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) interpretou que as regras não se aplicam à categoria. Juízes têm o mesmo entendimento. O chamado Conselhão ainda pediu que a Procuradoria-Geral da República (PGR) tente derrubar a lei na Justiça. A assessoria do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, disse que ele não recebeu o pedido ainda, mas que estudará o caso.

Um dos argumentos do Conselhão é o de que a própria presidente Dilma Rousseff liberou, no último dia 19, o valor necessário ao pagamento da regalia a todos que o recebem. Especialistas em contas públicas criticam, além do benefício em si, a liberação do dinheiro pelo Executivo por meio de crédito extraordinário, que só poderia ser usado em caso de “urgência ou catástrofe”. A decisão do CNMP permite que os procuradores recebam, ao contrário da LDO, diárias superiores a R$ 700.

Hoje, a diária da categoria gira na casa dos R$ 900. O auxílio-moradia — que pode ser recebido por magistrados e procuradores mesmo que já tenham residência no local de trabalho — custa aproximadamente R$ 450 milhões por ano aos cofres públicos e é apontado como um item para elevar os rendimentos artificialmente e, em alguns casos, criar supersalários além do limite legal de R$ 33,7 mil por mês. “Esse pagamento indiscriminado acaba sendo uma forma de remuneração”, disse ao Correio a presidente da associação dos defensores públicos da União (Anadef), Michelle Leite. Na semana passada, os defensores abriram mão do benefício irrestrito para cumprir a LDO e livraram os cofres públicos de uma despesa anual de R$ 32 milhões.

 

Reunião

A decisão de continuar a fornecer a benesse tal como ela é foi dada na última semana, em resposta a um pedido de providências da Advocacia-Geral da União (AGU) no início do mês que solicitou ao CNMP, bem como ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que a LDO fosse cumprida. Mas, após reunião, os conselheiros aprovaram por unanimidade o voto do relator Valter Shuenquener de Araújo. Na intepretação dele — que coincide com a defendida dias antes pelas duas categorias —, a LDO não deveria ser cumprida porque ela não pode se sobrepor a duas outras leis complementares que determinam pagar o auxílio-moradia de forma ampla.

O CNMP aceitou somente o pedido da AGU para cumprir regra das de resolução da categoria que impede pagar o benefício quando o cônjuge já o recebe ou quando há aposentadoria ou afastamento. A AGU já acionou o Judiciário mais de uma vez por acreditar que há beneficiários que não se enquadram nos padrões. Os argumentos definidos pelo Conselhão foram organizados por líderes da Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas) em uma reunião em Brasília.

Além da questão do auxílio, o CNMP entendeu que não deve respeitar o teto de R$ 700 como limite de diárias imposto na lei orçamentária. Na decisão, o CNMP alega não descumprir a LDO porque o artigo nº 17 da lei determina que deve ser feita “a incidência dos critérios elencados ‘até que lei específica disponha sobre valores e critérios de concessão, o pagamento de ajuda de custo para moradia ou auxílio moradia’”. E, no caso, já há leis complementares que não podem ser sobrepostas.

O argumento para não cumprir a LDO é reforçado com a tese de que o próprio Executivo interpreta que o pagamento do auxílio deve ser mantido. Isso porque o Palácio do Planalto editou medida provisória para liberar crédito extraordinário com o objetivo de efetuar o pagamento.

 

Frase

“Professores ganham mal, mas têm uma quantidade de férias tão grande ou maior que procuradores e juízes. Faz parte do pacote de cada uma das carreiras”

José Robalinho, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)

 

Regras atropeladas

A LDO deste ano definiu restrições aos gastos com auxílio-moradia e diárias, mas leis complementares do Judiciário e do MP permitem mais liberalidade

 

Valor mensal do auxílio-moradia:

R$ 4.377

 

Teto da diária de servidores, políticos e autoridades, segundo a LDO:

R$ 700

 

Membros do Judiciário da União:

6.400*

 

Membros do MP da União:

2.206

 

Total: 8.606 servidores

 

Fonte: Lei de Diretrizes Orçamentárias

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Penduricalho "absurdo"

Especialistas são unânimes em classificar como imoral o pagamento de auxílio-moradia para carreiras vitalícias. “É uma aberração. Primeiro que não se justifica a concessão a uma determinada categoria do setor público. O auxílio-moradia, por sua natureza, ou é de caráter geral ou não tem razão de ser. Não pode ser um benefício que se institua somente a uma categoria de servidores”, ataca o professor da Universidade de Brasília, o economista Roberto Piscitelli. Fundador da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco também é um crítico do benefício. “As pessoas querem criar penduricalhos para ganhar mais. Mas esse penduricalho não é justo. Se essa pessoa vem concursada ou para exercer um cargo que exercerá para o resto da vida, não há razão para o benefício”, afirma.

Carlos Azevedo defende o pagamento. “Pode-se discordar, estamos numa democracia, mas, como está previsto em lei, tem que ter outra para acabar”, contou. Presidente Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho, destaca que a lei permite o pagamento irrestrito, como acontece hoje. Além disso, faz parte das características da profissão. “É uma forma de compensar, faz parte do pacote”, disse. “Professores ganham mal, mas têm uma quantidade de férias tão grande ou maior que procuradores e juízes. Faz parte do pacote de cada uma das carreiras.” Se a lei for mudada, Robalinho garante que a categoria não se mobilizará.